J’accuse! é um texto polêmico, que testemunha um momento efervescente vivenciado pela sociedade francesa do final do século 19. Émile Zola, escritor já legitimado e conhecido fora da França, foi um daqueles intelectuais que saíram do cadinho “confortável”, no seu caso a literatura, para intervir no aceso debate gerado pelo affaire Dreyfus. Carta aberta endereçada ao presidente da França, Felix Fauré, é considerada por Jean-Denis Bredin um marco fundamental na história do jornalismo. Com apenas 4 mil palavras, ela pode ser vista como uma “obra-prima”, seja pelo resultado literário atingido, seja pelos debates públicos que conseguiu gerar e produzir.
O jornal L’Aurore, ao publicar esse artigo na primeira página, vendeu rapidamente todos os exemplares do dia 13 de janeiro de 1898, acendendo ainda mais as discussões sobre o caso. A partir da releitura do affaire feita por Zola, vários artistas e intelectuais pronunciaram-se publicamente. Tal atitude, tomada por um escritor que sai da esfera do literário-cultural para “intrometer-se” na do social e político, teve como resultado o Manifeste des Intellectuelles, publicado em 14 de janeiro de 1898, assinado por muitos homens de cultura, como Anatole France, Georges Courteline, Octave Mirabeau, Claude Monet e Marcel Proust.
Sem dúvida, J’accuse! (Eu acuso!), que dá título ao livro recém-lançado pela L&PM, é seu texto central, mas o volume é composto por outros escritos produzidos e relacionados ao affaire. De fato, é o próprio Zola que, no prefácio de 1901 à edição francesa, reproduzido nesse volume, com tradução de Paulo Neves, chama a atenção para o fato de essa coletânea não pretender ser uma história do processo contra o oficial judeu francês, apesar de os artigos terem sido escritos em momentos diferentes e trazerem o signo das tensões da época. É, sim, uma contribuição, um testemunho de quem presenciou aquele clima, as discussões relacionadas ao caso, e teve um envolvimento motivado pela injustiça que estava sendo cometida.
Diz Zola, nesse prefácio: “E gostaria unicamente de dar minha contribuição a esse dossiê, deixar meu testemunho, dizer o que soube, o que vi e ouvi, desde o ângulo do caso no qual atuei”. A idéia de testemunho é ainda reforçada pelo fato de o autor, ao reunir os textos para a publicação em forma de livro, não ter alterado, modificado ou revisto, de forma consciente, nenhum dos artigos. Outro aspecto é a ordem cronológica respeitada no livro, que segue a mesma da primeira circulação na imprensa francesa. Além disso, cada texto apresenta, abaixo do título, um pequeno parágrafo explicativo que o contextualiza, o que pode facilitar o entendimento do leitor. Eis um exemplo:
L’Aurore já havia tomado partido com uma independência e uma coragem admiráveis, e naturalmente me dirigi a ele. Depois desse dia, esse jornal tornou-se para mim o asilo, a tribuna de liberdade e de verdade na qual pude dizer tudo. Conservo por seu diretor, o Sr. Ernest Vaughan, uma grande gratidão. Depois da publicação no L’Aurore com seus trezentos mil exemplares e dos processos judiciários que se seguiram, a brochura mesma permaneceu na gráfica. Pois logo após o ato que decidi e realizei, acreditei dever guardar silêncio, à espera do meu processo e das conseqüências que viriam.
Se o título de um dos textos da coletânea é J’Accuse!, essa expressão vai tomando cada vez mais corpo e forma, à medida que Zola reconstrói a história do caso, dando a sua versão dos fatos. Há um trabalho sofisticado de leitura de documentos, decodificação, seleção e ressemantização. Uma expressão significativa que ganha ainda mais força na última parte do artigo-carta, quando ela é repetida propositalmente, como uma espécie de refrão, que produz até um ritmo cadenciado, ao iniciar oito parágrafos consecutivos.
Conseqüências
As conseqüências também não foram poucas. A partir desse artigo Zola é julgado algumas vezes e recebe duas grandes condenações. Como se sabe, é nesse momento que Zola exila-se na Inglaterra, onde ficará por quase um ano. Em 1899, no dia 3 de junho, é comunicada a revisão do processo e Zola regressa à França. No retorno, novamente nas páginas de L’Aurore, publica um novo artigo intitulado Justice, motivado pela reabertura do processo. Outro texto famoso desse período, cujo título é também emblemático, é La Vérité en marche, que também faz parte e integra o título dessa publicação.
Diante da querela francesa ou do affaire immortelle, como o denominou Marcel Proust, Émile Zola foi um dos primeiros homens de letras a se pronunciar e denunciar as ilegalidades e o abuso de poder cometidos pelas autoridades. Zola, escritor respeitado, não intervém por meio de sua produção literária, contudo não deixa de expressar a perplexidade e a inquietação relativas ao acontecimento que chamou a atenção de toda a França e, também, da Europa.
Sem dúvida, o evento marcou um novo traço no perfil da figura do intelectual e do homem de letras nessa passagem do século 19 para o 20, além de trazer à luz as feições de um indivíduo que trabalha em um âmbito diferente daquele social e político, mas que faz uso da sua legitimidade, de seu sucesso e de sua fama em outros meios, como a literatura ou as artes, para defender publicamente uma idéia. A imagem emblemática, deixada em 1898 e citada por muitos que tentaram definir e teorizar sobre o intelectual no século 20, é a de Émile Zola.
O texto de Zola é uma contestação e denúncia da manipulação de informações que envolviam o oficial do exército francês Alfred Dreyfus. O que está posto é que a imagem tida, até então, do depositário de uma cultura, um guardião das tradições ou a de um legislador, para usar a expressão de Zygmunt Bauman, não é mais suficiente. A imagem idealizada e “utópica” do escritor envolto na sua imaginação e isolado, “fechado” em sua torre de marfim, agora dá lugar a uma nova perspectiva em relação àquilo que está ao seu redor. Com efeito, a posição do homem de letras sofre mudanças radicais. O escritor não está mais isolado nas matérias e interesses artísticos que tendem a se distanciar do cotidiano; na realidade, ele, exatamente por ser escritor, tem responsabilidades e passa a intervir na res publica. A forma com a qual essa intervenção é feita, no caso de Zola e de muitos outros, é o trabalho com a palavra. As belas letras, claro, mas que também podem ser usadas de modo sofisticado para recriar situações, denunciar, descortinar. Um uso da linguagem e das imagens, cujo objetivo maior é o questionamento e o conhecimento. A idéia da literatura como conhecimento sem o detrimento dessa arte. O artista-escritor que se coloca comprometido com o “dever da verdade”.
A busca pela verdade permeia esses artigos e move o escritor a tomar certos posicionamentos. A presença dessa busca fica clara nas últimas linhas de J’Accuse!: “Minha questão é somente uma, a da luz, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado não é senão o grito da minha alma. Que ousem, portanto, levar-me ao tribunal, e que o inquérito se realize em plena luz!”. Luz, claridade, uma visão mais limpa e translúcida, é isso que clama Zola.
O affaire Dreyfus é, certamente, o mais famoso e polêmico erro judiciário de todos os tempos da justiça francesa, que provocou uma crise em todos os setores da sociedade, mas é importante ressaltar que é nesse conturbado ambiente que se trata, pela primeira vez, da idéia de intelectual, da forma como essa categoria passa a ser entendida no século 20. Postura paradigmática a de Zola que será lembrada por tantos outros escritores, filósofos e pensadores que refletiram sobre o complexo papel do intelectual e sua relação com a sociedade. Jean-Paul Sartre, com a literatura engagè, Norberto Bobbio, Edward Said, Pierre Bourdier são só alguns exemplos daqueles que retomam a experiência de Zola para poder construir os seus discursos no século 20.
Refletir sobre essa figura ao longo do século passado é também dar conta de uma série de mudanças e transformações que aconteceram no sistema social, cultural e político e, em relação ao indivíduo, na esfera do público e do privado. Como coloca Bourdieu:
O J’accuse! é o auge e a consumação de um processo coletivo de emancipação que progressivamente se foi cumprindo no campo de produção cultural: enquanto, ruptura profética com a ordem estabelecida, reafirma, contra todas as razões de Estado, a irredutibilidade dos valores de verdade e de justiça, e, no mesmo ato, a independência dos guardiões desses valores em relação às normas da política (as do patriotismo, por exemplo), e às imposições da vida econômica.
Uma polêmica que não deixou de ter conseqüências no campo político, obviamente, mas que também marcou as relações entre literatura e história e o papel do escritor como um produtor de significados.