Não adianta: mesmo conscientes da pressa, voltamo-nos ao começo e, debruçados sobre os estreantes, reunimos os lançamentos para compor uma — por assim dizer — plataforma de lançamentos. Para compor assim um módulo ainda que provisório a sustentar o recorte de uma década que se abre, a reunir os caminhos que se desenham borrando as margens conhecidas. Porque é assim que funciona: mesmo certos de que a arte esteve presente em cada grupo humano existente, acolhemos cada novo recomeço com alegria, com a alegria de quem (a despeito das vozes supercríticas que só vêem vazios depois da modernidade) reconhece literatura ali onde o livro parece se contorcer diante da necessidade de, mais uma vez ainda, dizer.
Tudo se complica quando o escritor, a literatura ou, que seja, uma identidade qualquer atrapalham esse dizer. Será preciso procurar a palavra antes, antes da vontade de escrever, antes da satisfação — lá onde o tempo passa e o corpo pede comida, pede mais corpo, palavra para permanecer de pé. Uma fome é o nome do livro. Nele, o escritor atrapalha tudo: “Afinal, tu sempre tiveste a maior vocação para escritor solitário, escreveu-me R. no último e-mail que se dignou a mandar. Depois disso, o silêncio perpétuo”. Os contos de Leandro Sarmatz sempre começam depois de uma recusa.
No conto homônimo ao livro, por exemplo, ao término por e-mail do relacionamento com R., segue a busca do narrador pela velha ambição da magreza. Uma contradição, afinal — como quem deseja preservar a fome e perder mais e mais corpo. “Querer emagrecer, para mim, se assemelhou a um convite irresistível à arte.” O chamado à arte pelo cultivo da fome e da magreza textual, além de explicitar as matrizes modernas eleitas pelo narrador (Franz Kafka, Samuel Beckett e Graciliano Ramos), aponta para um ideal de vazio inatingível por natureza, diante do qual a arte se mostra um resto persistente, uma presença absurda por ser incapaz de se apresentar como aquilo que é, um vazio. Este modelo organiza o realismo da obra de Sarmatz, pois afirma uma coerente imagem da literatura moderna como imagem do próprio mundo: “Em jejum, num eterno Yom Kipur sem culpa nem perdão nem deus. Abstrato e fatal. Anoréxico no infinito. Rivalizar com o nada. Pois foi esse o princípio de tudo”.
Ainda que os nomes próprios referidos tenham sido fundamentais à vida de tantos e tantos leitores e se tornem nesta obra princípio de tudo, extrapolando as bordas do livro para fundar uma noção do real, é o modo como a obra se escreve que dará uma imagem do escritor. Requisitar boas ou más influências e imaginar o mundo não garantem o sustento de uma obra, mas já são uma pista para uma escrita que não dissocia narração e conhecimento investigativo do mundo, como se a escrita fosse uma espécie consciente de vanguarda do conhecimento. De fato, aquela magreza textual perseguida guarda, em seu contraditório desejo de aniquilação, uma certa recusa da literatura que acaba por afirmá-la pelo avesso: “É curioso observar que, a cada peso perdido, perdia também a vontade de ler, escrever ou urdir livros. Mas vinha o tema do ensaio”. Sob a divisa do corte, o ensaio aparece no livro de Leandro Sarmatz não como panaceia estilística, mas como um mecanismo implícito de estruturação de todo o livro de contos. Neste sentido, o conto Uma fome escancara esta tensão entre a narrativa e o ensaio, e não à toa este é um conto que pode ser lido como o testemunho de um escritor à procura de sua obra — parecendo, por isso, emblemático de uma época que expandiu consideravelmente os meios de publicação da literatura e separou de vez a publicação da publicidade.
Limites de representação
A estrutura do livro de Sarmatz é rigorosa e coerente. Divididos em duas partes, “Atores” e “Abandonos”, os onze contos do livro de pouco mais que cem páginas trazem protagonistas que recusam, cada um a seu modo, certa identidade. Na primeira parte, todos os três protagonistas colapsam diante da necessidade de sobreviver às representações nazistas. Ao localizar culturalmente estas narrativas e representar efeitos subjetivos produzidos pelo nazismo, este tríptico inicial procura demarcar, na obra de Sarmatz, alguns limites da representação. O ator temperamental que reluta, por intermináveis caprichos, a representar um Hitler exilado na selva amazônica, o velho ator que já não recebia notícias do filho adotivo de origem judaica e aparência ariana, também ator, que fingira toda a vida sua pureza ariana para trabalhar como garoto-propaganda do regime, e o ator saído do Lager que resolve retornar, em longa viagem por uma Europa destruída, à cidade natal são três imagens trágicas de como os efeitos do nazismo interrompem a possibilidade de encenar para superar um real que se mostra maior que os poderes do eu.
Por um lado, o tríptico inicial insere Uma fome na tradição da literatura judaica, mas não apenas pelo tema. Na orelha do livro, escrita por João Gilberto Noll, lemos que “a presença discreta da graça (em todos os sentidos), localizável na tradição da arte literária judaica”, mantém o realismo dos personagens solitários que, por isso mesmo, são imagens do “sonambulismo das ilusões históricas do país ou do mundo”. Por outro lado, e por conseqüência disso, os limites da encenação com que se defrontam os atores dos três primeiros contos transformam-se, na segunda parte do livro, em recusas da encenação por personagens para quem encenar já é alimentar a engrenagem preconceituosamente seletiva das identidades que move as linguagens contemporâneas. Quando “ser escritor” é inserir-se num mercado que vende a imagem do escritor para vender seus livros, a obra de Leandro Sarmatz escolhe escrever encenando a recusa de ser escritor.
Num conto da segunda parte, Fontini, lemos o relato do artista plástico e ativista do Partido Comunista do Brasil César Fontini que, depois de um começo de carreira promissor na década de 1960, exila-se no sul do Brasil em 1979 acompanhado do Negro, um agente duplo — militar que era fonte de informações do partido. Ali, deixa de expor seu trabalho: “De certa forma, a clandestinidade pode ter sido a melhor resposta que eu poderia dar àqueles que compravam minhas obras e aos estudiosos da minha produção”. É interessante que esta clandestinidade convive contraditoriamente com o fato de lermos um conto que publica o depoimento de um artista que recusou a publicidade. Imagem parecida se repete ao final do conto Uma fome, em que, “perdido no meio dessa gente, essas vozes todas, perdido no meio dessa gente”, o narrador afirma seguir em frente “de boca fechada, de boca fechada”.
Há em Uma fome a contundência de uma escrita política que se recusa a retratar problemas da realidade social porque de todo modo considera o lugar público do escritor um sintoma desta mesma realidade problemática. Assim, há que se reconhecer a posição singular que esta obra ocupa no sentido de trabalhar menos com a representação da violência e mais com a violência da representação, na contramão de uma forte tendência da literatura da última década que foi feita no Brasil. É esta insistência na representação problemática da arte, do artista, do “ser escritor” que confirma a aproximação ao ensaio que a obra de Sarmatz propõe: a estruturação pelo ensaio e a recusa da imagem do escritor são um modo de o livro se posicionar e se proteger, localizando a escrita fora dos esquemas de publicação e publicidade da literatura contemporânea, dos quais inevitavelmente faz parte. A fome é esta insistência cega na recusa daquilo de que faz parte.
Muitas são as citações de nomes de artistas que atraem e cansam o olhar do leitor. O aproveitamento que se faz na contracapa do livro de um trecho que toma Kafka como personagem, a despeito de ser um dos melhores trechos do livro, é mostra deste excesso que manifesta um cansaço da cultura reconhecido pelos próprios personagens: “conheci Kiefer, Beuys” em meio a um “debate bizantino sobre Godard”. A presença insistente destes nomes atrai para o texto de Sarmatz um caráter pop que está em tensão com a postura incisiva de recusas que o caracteriza.
Uma fome, de Sarmatz, lança-se, sobretudo, como uma obra detonadora de questões prementes no panorama que se abre; quando é assim, a leitura procura farejar os limites do nosso tempo.
3 Perguntas – Leandro Sarmatz
• Por que iniciar a carreira literária com um livro de contos?
Na verdade, antes de Uma fome eu já havia publicado dois outros livros: Mães & sogras, uma peça teatral, e Logocausto, poemas. De modo que Uma fome não é propriamente um “início” — a não ser, claro, pelo fato de ser meu primeiro livro por uma grande editora. Mas mesmo à época da publicação da peça eu já escrevia prosa de ficção. Lá por volta de 2007, resolvi organizar minhas histórias, já pensando no arranjo para um livro. Tanto que em Uma fome há contos de 2001 (o mais antigo deles) até 2008.
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
O primeiro contato foi certamente na infância: minha mãe abriu uma espécie de “conta” (como nas cantinas escolares) em um bazar/revistaria do nosso bairro. Então todos os sábados eu ia até lá e escolhia um livro, ou um gibi, e levava para casa. No fim do mês ela acertava com o dono do bazar. Isso certamente foi importante para me aproximar da leitura, para despertar o gosto pela palavra etc. Mais tarde, já em plena adolescência, descobri casualmente um poema do Baudelaire numa enciclopédia doméstica: era a tradução de O albatroz. Fiquei absolutamente fascinado por aquilo. Desde então persigo este momento de descoberta. Uma grande parte do meu envolvimento com literatura, sobretudo como leitor, tem a ver com isso: descobrir o texto de alguém e então seguir suas pistas nos que vieram antes e depois. E isso — essa rede — não tem fim!
• O que você espera alcançar com sua escrita?
Não ser sugado pelo buraco negro da culpa.