Fim: um belo começo

Fernanda Torres estréia com aprumo estético, humor refinado e dicção de ficcionista nata
Ilustração: Fernanda Torres por Eric França
06/01/2014

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

 Sob a singeleza e delicada ironia dos versos de Consoada, um dos mais conhecidos poemas de Manuel Bandeira, subjaz uma inequívoca gravidade. O poeta tenta fazer graça — “Alô, iniludível!” —, mas ela bate num silêncio pesado e constrangedor para logo reverberar mais contida e melancólica — “O meu dia foi bom, pode a noite descer” —, porque o tema não se presta mesmo a brincadeiras. Nada é mais solene do que a morte. Talvez porque seja um exato contraponto à tangibilidade e finitude da vida, o acontecimento que abre as portas para a eternidade e seus insondáveis caminhos (ou simplesmente para o apagar, como acreditam alguns) não poderia ser mesmo banal, pelo menos do ponto de vista de quem o experimenta. Quase todos os relatos de quem esteve na iminência de morrer mas conseguiu escapar das garras da misteriosa dama coincidem num ponto: a vida inteira passa pela cabeça do infeliz mortal como num filme acelerado, de modo a que tudo o que ele viveu caiba num único instante, um átimo desse tempo ainda mensurável que a Indesejada está prestes a quebrar para todo o sempre.

Na literatura a morte costuma ser tratada e retratada com a mesma solenidade que desperta no mundo real, e poucos são os exemplos de obras que fogem desse padrão. Um deles é o belo romance de José Saramago As intermitências da morte, de 2005, cujo genial argumento baseia-se numa inusitada greve que decide fazer a protagonista, com conseqüências tão hilárias quanto calamitosas para a população de um fictício país. O humor de Saramago usa o fantástico como metáfora para chegar à crítica social, que era um de seus principais interesses. No sentido oposto, os últimos momentos da vida de escritoras famosas são séria e magnificamente recriados por Adriana Lunardi nos contos de Vésperas, de 2002, onde a tragédia humana deixa pouco ou nenhum espaço para o riso.

Em seu romance de estréia, Fim, Fernanda Torres parte das derradeiras horas de cinco personagens para narrar suas histórias, dando ênfase à que viveram juntos, e tratando-as com a devida humanidade, mas também com muito humor. Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro conheceram-se na praia, foram companheiros de farra no Rio de Janeiro dos gloriosos e tumultuados anos 1960, em festas regadas a álcool, sexo e drogas, tudo sempre em generosas doses. Na época, os então trintões curtiam os anos do desbunde feito adolescentes desbundados e, principalmente, desmiolados, como se para eles a vida fosse terminar ali, no dobrar da esquina. E isso podia muito bem ter acontecido, pois não era raro o motorista sair dirigindo depois de ter cheirado e bebido todas. Casaram, traíram, foram traídos, separaram e, depois de terem aprontado o que podiam, acabaram por se afastar. Álvaro e Ribeiro se reencontram em Copacabana, por acaso, um dia antes da morte de um deles, e combinam de repetir esse encontro sem saber que o destino não vai permitir que isso aconteça.

Brilho e leveza
Fim compõe-se de cinco capítulos e um epílogo. Cada capítulo é intitulado com o nome de um dos personagens, sob o qual vêm informadas também as respectivas datas de nascimento e morte. Dois detalhes curiosos: Ribeiro morre no mês em que o livro foi lançado, novembro de 2013, enquanto Álvaro tem o óbito projetado para uma data futura, no próximo ano.

Os capítulos começam invariavelmente com uma narrativa em primeira pessoa em que o protagonista, com a morte lhe batendo à porta, relembra fatos de sua vida, as eventuais alegrias mas sobretudo as muitas frustrações. O narrador muda em seguida para a neutralidade de uma terceira pessoa e vai alternando o foco narrativo entre os vários personagens secundários da trama: esposas, filhos, amantes. O epílogo remete a uma cena descrita no primeiro capítulo, fechando o círculo com um episódio que parecia menor a ponto de ser esquecido, e que só no fim vai revelar sua real importância na trama. De resto, a passagem é emblemática da construção do próprio romance. A estrutura lembra uma rapsódia: fragmentos da história principal, contados através de diferentes vozes e ângulos, vão sendo apresentados como peças de um quebra-cabeça. Essa opção demanda uma habilidade incomum do ficcionista para não confundir o leitor nem dispersar sua atenção, e Torres surpreende ao exercê-la com extrema competência.

Os cinco personagens são tipos absolutamente comuns que mais compartilham afinidades do que colecionam divergências (embora elas não sejam em nada desprezíveis), e não foi por outro motivo que se aproximaram no passado para viver juntos suas aventuras mais marcantes, essas que vão recordar pelo resto da vida e, muito especialmente, em seu final. Nem todos chegam a envelhecer — Ciro, o Casanova do grupo, e Neto, o mais bem comportado, têm as vidas ceifadas ainda na década de 1990 —, mas a velhice dos três sobreviventes ganha uma ressonância tão expressiva que acaba dominando toda a história. Sem dúvida o responsável por esse efeito é Álvaro, o mais longevo da turma, cuja sarcástica rabugice desponta já nas primeiras linhas do romance:

Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d. Manuel I e sua corja de tenentes Eusébios. Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me dêem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico estúpido. Mania de mosaico. Joga concreto em cima e aplaina. Buraco, cratera, pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma numa interminável corrida de obstáculos.

Torres pratica um humor refinado que se vale da fina ironia, do sarcasmo, do cinismo para, na perfeita avaliação do escritor Sérgio Rodrigues na contracapa do livro, “transformar histórias noturnas de velhice humana numa ensolarada comédia carioca de costumes”. Esse é o aspecto mais fascinante da obra: individualmente, as cinco histórias são banais, desgraciosas, por vezes até sombrias; vistas na perspectiva de um conjunto, ganham brilho e leveza, pois se completam para compor a crônica de uma época que começa nos anos do desbunde (termo usado com muita propriedade pelos editores), a versão carioca da grande revolução sexual que sacudiu o mundo na década de 1960. A cidade que recém havia perdido o status de capital federal ainda mantinha a primazia como metrópole, e era nela que as novidades aportavam, eram processadas e só depois chegavam ao resto do país. O sexo deixava aos poucos de ser um assunto velado para virar tema de conversas de bar, o feminismo entrou em cena e foi logo tratando de empurrar o machismo dominante para fora da sala, a vida começava a pulsar numa cadência mais livre e bem mais atraente. Os vibrantes protagonistas da grande virada são os idosos alquebrados que povoam agora as ruas de Copacabana, tropeçam nas pedras portuguesas do calçamento irregular, morrem de queda, infarto ou simples cansaço de viver. O humor melancólico da autora tem sua gênese numa aguda percepção dessa realidade.

Há estréias e estréias. O que se observa com mais freqüência é o novo autor chegar devagarinho, não muito seguro do terreno onde pisa e, na melhor das hipóteses, despontando como um talento promissor. O ofício de escritor é um aprendizado perene e contínuo; a evolução na carreira, algo decorrente desse aprendizado; e é raro, muito raro, que um primeiro livro revele um ficcionista já pronto e acabado, que espreite o mundo com um olhar humano e ao mesmo tempo exclusivo e que tenha uma dicção adequada para traduzir em palavras o que percebe com a agudeza de todos os sentidos. Não é algo fácil de ser alcançado, mas Fernanda Torres demonstra sobejamente ter conseguido. Em casos como esse, o grande desafio está em manter o bom resultado da estréia em obras posteriores, sem repetir a fórmula e surpreendendo outra vez o leitor. Só o tempo poderá dizer se as melhores previsões feitas agora irão se confirmar.

Por enquanto, um caloroso aplauso.

Fim

Fernanda Torres
Companhia das Letras
208 págs.
Fernanda Torres
Nascida em 1965 numa família de grandes artistas, os atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, a carioca Fernanda Torres construiu uma vistosa carreira como atriz de teatro, cinema e televisão, que já completou 35 anos. Há algum tempo descobriu o gosto pela escrita e virou colunista da Folha de S. Paulo e da revista Veja Rio, além de colaboradora da revista piauí. Fim é conseqüência desse processo e sua estréia na literatura de ficção.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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