O alerta sobre as mudanças climáticas se intensificou no Brasil em 2024. A situação ambiental, que já era preocupante há décadas, parece estar à beira de um ponto sem retorno. O recorde de queimadas, em parte criminosas, no país e a destruição generalizada das enchentes no Rio Grande do Sul sublinharam o fato de que não é possível seguirmos sem mudarmos radicalmente nossa relação com o meio ambiente.
É neste contexto que Morgana Kretzmann lança o romance Água turva, cujo cenário é o Parque Estadual do Turvo, no Rio Grande do Sul. Situado na fronteira com a Argentina, o parque ocupa o centro da trama. Enquanto o governo visa a construção de uma hidrelétrica que ameaçaria a existência do Turvo, os moradores de Dourado, cidade fictícia, se posicionam firmemente contra a empreitada. Assim, Kretzmann desenvolve uma narrativa que perpassa questões ambientais, políticas e familiares para demonstrar como a maior ameaça à existência humana é a sua ganância.
História de três mulheres
A primeira coisa a chamar a atenção em Água turva é a grande quantidade de personagens. Da lista no início do livro constam 24 nomes, a maioria pertencente às quatro gerações das duas famílias principais do romance: os Sarampião e os Romano. Dividida em cinco partes, a narrativa é não linear e salta entre os anos 1950, 1990 e 2000. Com tais características, Água turva poderia ser um romance confuso, mas Kretzmann é habilidosa e constrói uma história em que o leitor dificilmente se perde. Em parte, isso se deve à maneira como a autora ancora a narrativa com três personagens principais: Chaya, Olga e Preta.
Chaya é guarda-florestal e responsável por combater a caça ilegal de animais silvestres no Turvo. O romance inicia com a personagem no meio de uma operação, colocando o leitor numa busca veloz por caçadores na floresta. A vertigem gerada por esse início e o uso de frases curtas para narrar a ação anunciam a urgência que marca boa parte da narrativa. Com capítulos curtos e ritmo veloz, Água turva é um romance com linguagem cinematográfica facilmente adaptável para o meio audiovisual.
As palavras de Chaya a seu chefe quando vai contra suas ordens na operação — “Eu sou desse lugar, sei o que tem que ser feito aqui e como tem que ser feito” — indicam como o romance também fala de pertencimento. Bisneta de Sarampião, que tem lugar lendário em Dourado, sua estátua ocupando o centro da praça principal, a guarda-florestal introduz a importância da conexão com a terra e a ancestralidade. Criada pelos Romano, Chaya lutou para não esquecer seu lugar como Sarampião. Nesse sentido, num aspecto quase fantástico na narrativa, a personagem sente a presença do bisavô no Turvo e luta para preservar o parque contra interesses políticos.
É no plano político que a narrativa encontra seus pontos mais altos. A hidroelétrica Gran Roncador é iniciativa do Partido Nacional Ambiental, que ironicamente não defende nada que seu nome indica e se alia ao presidente extremista que comanda o país. Olga é assessora do deputado Afrânio Heichma e é por meio da personagem que Kretzmann figura o jogo político sujo por trás da construção da Gran Roncador.
Oriunda de Dourado, o retorno à cidade significa para Olga a reabertura de feridas. Forçada a enfrentar suas memórias, a personagem decide alinhar-se a Chaya para impedir a construção da hidroelétrica e fazer as pazes com o passado. Em entrevistas, Kretzmann tem descrito Água turva com um thriller e os capítulos sobre a investigação de Olga fazem jus ao rótulo. A autora é engenhosa na construção do suspense nas cenas e o leitor é levado à sensação de que a personagem corre grave perigo.
Das três personagens centrais, Preta talvez seja a mais interessante. Chefe dos Pies Rubros e prima de Chaya, Preta representa na narrativa o lugar de fronteira. Por meio da personagem, Kretzmann figura um Brasil pouco conhecido. O território dos Pies Rubros é entendido no romance com uma fronteira que não é nem Brasil e nem Argentina, e a única lei é a palavra de Petra.
O conflito familiar entre Chaya e Preta ocupa grande parte da narrativa. O romance é construído em volta do mistério a respeito da morte de Sarampião. O duelo entre as duas personagens é uma das cenas marcantes do livro e exemplo da linguagem cinematográfica empregada por Kretzmann. Contudo, com tanto espaço dedicado à questão, a revelação sobre o desaparecimento de Sarampião acaba por ser anticlimática e, consequentemente, a conciliação entre as primas perde o peso de sua carga emocional.
De acordo com Kretzmann, a escrita de Água turva durou quatro anos. Dois deles foram dedicados à pesquisa e o restante à escrita propriamente dita. No entanto, o ano de 2024 parece ser o momento ideal para o lançamento do livro. Em entrevistas, a autora tem afirmado que estamos vivendo a era do fim do mundo e defendido a literatura como potência no despertar de uma consciência climática. Mais uma vez, a capacidade da literatura de conectar leitores com experiências alheias é evocada para visar um futuro melhor. Nesse sentido, a arte talvez seja a aliada necessária do discurso científico para entendermos que o mundo não é descartável.