O que resta para as pessoas que vivem em situação de rua? Onde ficam suas famílias, coisas e memórias? Essa parece ser a inquietação dos personagens de Nunca houve tanto fim como agora, de Evandro Affonso Ferreira, autor também de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Neste novo romance, Ferreira mantém uma fidelidade ao estilo e repete fórmulas na linguagem já conhecidas pelos seus leitores. Como marca principal, a inventividade no uso das palavras e um narrador com pensamento acelerado e várias referências na memória.
Há uma velocidade própria na escrita — um convite para uma leitura também ritmada. Ou seja: é um livro para ler rápido, de uma só vez. Só assim é possível compreender e se envolver na atmosfera dos personagens. Entre as duas obras do autor, o tema é outra característica em comum: o submundo. Nos dois casos, temos protagonistas que moram nas ruas. Mas neste, há algo mais profundo. Discute-se também o sentido de comunidade das pessoas que vivem em situação de rua e o abandono social, não apenas a crise individual ou de relações com o “mundo exterior”, como em O mendigo que sabia…
Quem narra a história em Nunca houve tanto fim como agora é Seleno, protagonista de um quinteto de moradores de rua, seres humanos “desprovidos do olhar do outro”. Em tom de caderno de memórias, escrito uma década depois do convívio de Seleno com os demais, o livro apresenta anotações e reflexões desse personagem, além das referências aos seus amigos — os mais citados são Eurídice e Ismênio, em claras referências à mitologia grega. A descrição desses companheiros é tão rica que é possível ao leitor enxergar sua individualidade.
Ismênio uma vez argumentou: Quem colocou gente como nós no mundo não sabe economizar — gasta vida à toa.
Comparado aos outros personagens do livro, Seleno dá um passo adiante nas reflexões. Ele tem essa vantagem do distanciamento dos anos, da tentativa de compreender o que significou a vida daquela maneira. Em um dos trechos, ele diz que a teologia, a filosofia, a sociologia e a psicanálise ainda não foram capazes de se aprofundar no tema do abandono. Os pensamentos sobre o suicídio e a morte percorrem todo o livro. Convive com eles a ideia de antecipar o fim da vida. O abandono cansa. Para os personagens, parece haver apenas duas opções: o suicídio, ou o que o narrador chama de “suicídio lento”, que não é tomar uma atitude rápida, mas descuidar de si mesmo, e mais, destruir-se de outras formas, de maneira mais lenta: exagerar nas drogas, por exemplo. A expectativa de vida na rua é outra, muito menor.
Memória e família
Não se sabe do passado do quinteto, nem como essas pessoas chegaram à condição de rua. No livro, conhecemos suas crises e as reações diante do abandono que vem de tantos lados diferentes. A primeira crise que se pode apontar é a da memória. Quais são as lembranças de quem mora na rua? Onde estão guardadas? Quem vive nas ruas não tem álbum de fotografias. Recria sua própria história, constrói suas lembranças de outras maneiras.
Há ainda a exclusão da rotina da vida no outro lado da cidade, o lado dos que têm endereço. Um lado em que a população divide uma rotina em comum: visita da família aos domingos, festa no Natal. Quem está na rua não tem essa rotina, não tem data, não tem calendário. Por que nenhum parente os procura?
Aos domingos nossas almas ficavam dia todo pedindo misericórdia. Esse dia nos acabrunhava com seus marasmos. Ausência da família pesava mais aos domingos, embora estivéssemos conscientes de que aquilo que tivéramos antes não merecia o epíteto de família. Aos domingos sentíamos saudade de um ajuntamento qualquer de pais, irmãos, avós.
Existe um incômodo evidente entre os personagens a respeito do abandono familiar. Em algumas situações, eles revelam ter saudade desse convívio, ou ao menos de ter uma boa lembrança a qual se apegar. Em função disso, o leitor entende que eles já souberam o que é ter uma família, vieram de algum lugar. Isso provoca ainda mais dúvida: estão na rua desde quando? Como foram parar ali? Onde está essa família? O protagonista Seleno fala rapidamente sobre mãe e pai, mas pouco sabe sobre eles.
No enredo em si, pouco acontece. Talvez seja uma característica dos diários pessoais: mais reflexões e reminiscências do que grandes reviravoltas. O mundo exterior pouco importa. Ao longo da narrativa, o quinteto tem quase nenhum contato com pessoas “de fora”, com esses transeuntes que não os enxergam. O foco do autor está no convívio entre eles, esse mundo independente, com regras próprias. Esse conjunto de abandonos parece ter feito com que o próprio quinteto se enxergasse como um grupo de pessoas inferiores.
“Ranhos e remelas”
Ismênio repete o termo “ranhos e remelas” uma infinidade de vezes. Isso pode representar, para além do dilema existencial, a condição fisiológica do seu modo de vida. Algo que também é determinante nesse ambiente: as limitações da saúde, da higiene. Além disso, embora vivam em comunidade e tenham os mesmos hábitos, os personagens sentem nojo uns dos outros. A condição toda da vida na rua os coloca próximos demais do corpo do outro. Ou seja, a “ferrugem” do corpo, como diz o protagonista, os transformavam internamente também. São dores indissociáveis.
Modo geral nosso esconderijo era nossa própria sujidade, nosso corpo ferruginoso que nos dava outra pele, outra aparência: com o tempo íamos nos tornando outros, interna, externamente, impregnados de escamas fuliginosas. Depois de tantos anos vivendo na rua, não seríamos reconhecidos num átimo nem sequer pelos parentes mais próximos. Nem mesmo através deles, nossos olhares: senhas hieroglíficas.
Geografia
O quinteto é parte da paisagem da cidade. Os pedestres passam e não reparam, ou fingem não ver. A comunidade Relento perdeu também seu direito à cidade, não cabem na topografia. É nesse sentido que Nunca houve tanto fim como agora entra num debate mais amplo sobre comunidade e exclusão social. Há uma forte reflexão filosófica nas anotações de Seleno, mas há um outro campo de informações que envolvem outros temas.
Ensinávamos uns aos outros que cidade sempre reduziria à impotência nossas vozes, estropiaria nossos passos, desguarneceria nossos gestos destroncando nossas mímicas; e, se fosse possível, aboliria por decreto todas as sombras, para que pudéssemos ter o mesmo desfecho esmarrido ressecado de lagartixa morta exposta ao sol.
A religião está ali também: o abandono não é apenas terrestre, mas “celestial”. O protagonista sente que há um Deus responsável pelo abandono. As mortes prematuras dos companheiros o levam a questionar, anos depois, onde estariam os amigos se tivessem seguido o mesmo caminho que ele. Mas o narrador nos deixa com uma impressão de continuidade. O recado é: independentemente do destino que se tenha depois de anos sobrevivendo ao Relento, sempre se faz parte dele. Algo do abandono é carregado com eles para onde forem.