Depoimento de um amigo e de um quase companheiro de geração, evocativo e fraternal, José Olympio: O descobridor de escritores, de Antonio Carlos Villaça, é um livro sem arestas, uma homenagem carinhosa ao grande editor. Poucos terão admirado J. O. tanto quanto o memorialista de O nariz do morto (1970).
Villaça é escritor que se compraz em contar casos da vida literária, transitando entre homens e livros no tecido incerto e fugidio dos dias que sucedem aos dias. Escreve de maneira despojada, sem mistérios, num ritmo de quem rememora, de quem busca recompor o passado evocando-o subliminarmente. No ensaio, bem como nas suas memórias, ele não abandona os passos do cronista do mundo da literatura. Os títulos de seus livros são sugestivos: Encontros (1974), Tema e voltas (1975), Literatura e vida (1976). É nesse sentido que podemos ler José Olympio: O descobridor de escritores, como a crônica de um dos momentos gloriosos da vida literária brasileira. E a história de J. O. é a história da sua editora, tal a sua entrega ao ofício, seu amor ao livro. O depoimento do secretário Sebastião Macieira é curioso, conforme registra Villaça: “Nota que Seu José tem amor fora do comum ao livro. Quer que se lavem as mãos antes de pegar num livro”.
Esse grande personagem que foi J. O. talvez não tivesse o tino comercial, porque era antes um homem da cultura, um homem que, do ponto de vista financeiro, foi um saltimbanco. Ele se tornava uma espécie de pai dos seus editados, conforme escreve Rachel de Queiroz no prefácio, num texto revelador da personalidade do seu editor. A consideração que tinha pelos autores, a dignidade com que os tratava talvez seja o que mais o diferencie da maioria dos grandes editores brasileiros atuais, cada vez mais distantes dos escritores e consequentemente da realidade do país, dos problemas brasileiros.
Villaça compôs de J. O., insisto, um retrato de amigo, muito próximo do perfil que Erico Verissimo traçou de seu editor em Um certo Henrique Bertaso (1972), cujo subtítulo é sugestivo: Pequeno retrato em que o pintor também aparece. Como no livro de Erico, em que se conta a história da antiga Livraria do Globo, também aqui temos a trajetória de um homem que acreditou no sonho e que o realizou, num tempo em que o Brasil ainda se definia intelectualmente por meio das idéias de alguns mestres como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Claro, o século 21 não comportaria mais uma figura como J. O., com as suas idiossincrasias, com o seu quixotismo, à maneira de um Henrique Bertaso, de um Monteiro Lobato. Personalidades paradigmáticas do livro brasileiro, eles tiveram os seus epígonos: Ênio Silveira (Civilização Brasileira) e Pedro Paulo Moreira (Itatiaia) serão alguns deles, também figuras de um outro tempo.
O livro que Antonio Carlos Villaça escreveu é um manancial de histórias no qual os personagens atendem pelos nomes de Jorge Amado, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Otávio Tarquinio, Otto Maria Carpeaux, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Gilberto Amado, Graciliano Ramos, Luís Jardim. De cada um extraiu-se um pouco, uma confidência, uma anotação casual, uma informação que auxilia na compreensão da personalidade um tanto retraída do editor. E o pintor é caprichoso na precisão do traço: “O vácuo não era o seu reino. Gostava de pisar no chão firme dos fatos, das realidades precisas, das grandes questões. O seu mundo não eram as aparências, mas as verdades concretas, aqui e agora. Fascinava-o a exatidão da verdade”.
Vale destacar ainda a transcrição de uma polêmica carta de Carlos Lacerda e de uma outra, reveladora do pensamento de Alceu Amoroso Lima. Mas é a transcrição de uma terceira, de Jorge de Amado, exercício de admiração ao amigo quando completava sessenta anos, que sintetiza o papel fundamental de J. O. à frente de sua livraria e editora: “No dia em que se escrever a história da grande obra realizada por José Olympio, terei um depoimento a prestar. Sinto hoje a satisfação de ter sido funcionário e editado da Casa nos seus inícios, nos tempos heróicos, quando você iniciou uma revolução em nossa indústria editorial. Outros haviam realizado algumas escaramuças, entre eles o inesquecível Gastão Cruls. Mas foi você quem fez a revolução, mudou os dados do problema, acreditou na literatura nacional, em nossos escritores. Éramos uns meninos rebeldes e agressivos e o moço paulista nos deu o apoio necessário”. Estávamos a 19 de dezembro de 1962. As perspectivas aí estão: um dia se escreverá de maneira definitiva a história da literatura brasileira dos últimos cem anos. Nela, o nome de J. O. (e da J. O.) deverá alcançar a sua dimensão. O livro de Antonio Carlos Villaça aponta os caminhos.