Portugal é um campo vasto em produções poéticas. O gênero está enraizado na própria história do país, desde os tempos das cantigas trovadorescas. A história da literatura portuguesa nos mostra que há um fluxo contínuo de vozes diversas e que compõem o panorama poético das mais diferentes maneiras de se expressar em rimas e estrofes até os versos livres motivados pelas vanguardas. Camões, Bocage, Antero de Quental, Cesário Verde, Antônio Nobre, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Mario de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Natália Correia e tantos outros nomes e poéticas são destacáveis no contexto literário português. O século 20, especificamente, é encabeçado por Fernando Pessoa e a geração de Orpheu, que traria inovações de escrita, irreverência e uma característica do chamado ciclo pessoano: a multiplicidade.
Ao pensarmos o século 21, vemos ainda essa verve de ruptura, inovação e multiplicidade quanto à forma de construir o poema, tanto quanto ao que nele é trabalhado como tema e os diversos eus e questões que são identificáveis em muitas poéticas de homens e mulheres que escrevem o século. Daniel Jonas é uma dessas vozes.
Os fantasmas inquilinos é uma antologia de poemas do autor português. O volume é organizado por Mariano Marovatto, que também assina o posfácio do conjunto. Nesse texto, Mariano comenta aspectos interessantes da poética de Daniel Jonas, partindo da ideia de seu próprio nome. Daniel e Jonas, duas personagens bíblicas conhecidas por histórias de sobrevivência e questionamento. “Daniel foi salvo dos leões porque era leal a Deus acima de tudo, enquanto Jonas, submergido dentro da baleia, contestava o seu”, nas palavras de Mariano, essas duas componentes metafóricas compõem não só o nome do poeta, mas a sua construção poética. Podemos associar o que ele nos diz, ao pensarmos sobre o autor, que se por um lado Daniel Jonas é leal à poesia e tudo o que nela é fértil e profícuo, por outro é contestador e inovador no tratamento da matéria poética.
Mikel Dufrenne, em obra sobre o gênero poético, comenta que toda a arte tem uma matéria-prima sobre a qual desenvolve o seu trabalho, o da poesia é a palavra. O poeta, então, articula a palavra e constrói um universo, ou cosmo, onde é possível identificar seus traços característicos. Em Daniel Jonas encontramos aspectos muito peculiares de escrita e organização dessa matéria-prima, um deles é justamente a escrita de sonetos. Ao lembrarmos alguns dos nomes de poetas portugueses, não podemos esquecer que muitos desenvolveram a escrita de sonetos, partindo do próprio Camões, Bocage, Antero de Quental, Florbela Espanca e vários outros que usaram essa poética como expressão de sentimentos. Daniel escreveu três livros de sonetos, Sonótono (2007), Nó (2014) e Oblívio (2017), que também compõem Os fantasmas inquilinos. O próprio poeta comenta que desejava produzir três livros de sonetos, e atingir o número de sonetos shakespearianos: 150. A partir disso, está a construção dessa “trilogia sonetista” que lhe parece bem como exercício e como meta cumprida. Daniel é também tradutor de autores de língua inglesa como Shakespeare, Evelyn Waugh, John Berryman, Charles Dickens, Malcolm Lowry, Henry James, William Wordsworth e John Milton, do qual verteu para a língua portuguesa Paraíso perdido.
Os poemas que compõem o volume resgatam todas as obras do autor, desde 2005 até 2017. A organização de Mariano teve como ponto de partida os poemas mais recentes até o primeiro livro e, conforme indica, seguem a ordem do poeta. É redutor procurar um fio de Ariadne na poética de Daniel Jonas, mas podemos identificar alguns elementos primordiais e que encontramos por vezes em seus diversos livros, como a efemeridade do tempo, a velocidade do cotidiano, a apreensão de coisas aparentemente banais e o próprio fazer poético. Talvez seja nas questões metapoéticas que resida a chave do jogo de que fala Daniel, uma chave que ele não se nega a dar, mas que pode ser um quebra-cabeças complicado, dispersado por poemas, envolvido pelas palavras que formam o corpo de cada composição.
Ler os mortos
Em 2017, por ocasião do lançamento de Canícula, em entrevista ao jornal português Observador, Daniel comenta a Joana Emídio Marques sobre a construção de sua poética e o conceito de poesia que lhe é pertinente: “Porque pouco se recolhe da poesia. Porque há cada vez menos pessoas a frequentá-la, mas antes em atividades diletantes da poesia como evasão. A poesia não é evasão”. Essa ideia de poesia está presente em muitos dos poemas de Os fantasmas inquilinos, como em Elementário, no qual o poeta trata do sentido das palavras e como o poema diz em cada palavra um universo de significados para leitores diferentes: “O verdadeiro sentido das palavras/ é o que o poema consiste/ em falar do que não pode ser dito a quem/ se quer dizer” e ainda “isto, claro, partindo do princípio de que há um sentido nas palavras, verdadeiro, um poema e um/ a quem se queira dizer”. Recuperando o sentido pessoano de poesia, que está em Autopsicografia, em que a poesia é o dispositivo que dá movimento ao “comboio de corda que se chama coração”, para Daniel Jonas a palavra é que está no poema como alicerce para o que pode/não pode ser dito a alguém, desde que acreditemos, é claro, que as palavras tenham um sentido. Podemos recorrer a Octavio Paz quando nos diz que a poesia é salvação, mas também abandono.
“Ao ler os poetas/ troco com eles a morte/ no meu barbitúrico cansado. Falam-me/ de dentro/ de um mistério, de uma eclusa de silêncio/ vermes industriosos/ mas ultimamente no húmus/ mumificados.” Nos primeiros versos de Ao ler os poetas, Daniel Jonas coloca-nos uma ideia interessante e que reflete o que esperamos da literatura e nomeadamente da poesia: lemos os mortos, que articulam nosso imaginário, um húmus já mumificado e que precisa de arejamento, de uma nesga de luz e ar para articular moléculas, e soltar no ar partes de poéticas, partículas de sentido e sonoridades recolhidas. As vozes desses poetas contam como assombrações, porém é na leitura da poesia que a “palavra amiga” pode ser ouvida ou relembrada e todo o processo de engendramento, de memória, de busca pelo sentido e jogo de abandono e procura recomeça.
“Escrever é dor. Esquecer dor é. Que vício! É uma hérnia na alma este ofício…”, diz-nos Daniel Jonas no soneto Dói-me o que não escrevi, e que não tive em sorte. O que nos lembra a essência do fazer poético do qual nos fala tanto Jorge Luis Borges e Octavio Paz: a poesia tem um propósito que ao mesmo tempo é o de sepultar o que o mundo nos oferece e que não conseguimos entender ou absorver e também o de oferecer ao mundo uma renovada percepção do que nos atinge, desloca, e salva da inércia e do medo da morte. É a escrita da poesia o vício e ofício de que fala Daniel Jonas. É na escrita do poeta que encontramos as nuances e as diretrizes da poesia contemporânea e seus sentidos, desdobramentos e usos das palavras a que o sujeito/leitor do século 21 está atento também como vício e ofício de uma busca constante por versos, estrofes, poemas que lhe provoquem, atinjam ou saciem alguma fome de sentido e, por que não, de sentimentos diversos e complementares.