Muitas vezes já se ouviu dizer que não existe noiva feia. Outras, que não existe criança feia. Todos, ainda, são unânimes ao afirmar que mesmo os bichos adultos menos favorecidos pela beleza foram, na tenríssima idade, lindos filhotes. O livro novo também poderia fazer parte desse grupo seleto que não conhece feiúra. Pelo menos, ela inexiste aos olhos do leitor na hora em que o livro se apresenta. Tê-lo nas mãos assim recém-saído do forno, estalando como pão quente e cheirando a papel — com o perdão do trocadilho — novinho em folha, é só o começo de um ritual de várias etapas. Depois, sentir a textura da capa e do miolo ainda intocado, contemplar a capa e descobrir sua autoria, verificar qual a fonte usada na impressão e a qualidade do projeto gráfico. E, após concluída a leitura das orelhas e da contracapa, adentrar enfim num território mágico. O livro é, em última análise, sempre um convite, e, sendo assim, é natural que desde a embalagem ele queira seduzir. Também é natural que, por melhor que seja a apresentação, ainda cabe ao texto a grande tarefa de conquistar o leitor. Nem sempre apresentação e texto andam de mãos dadas. Às vezes, um ótimo livro sobrevive num invólucro malcuidado, mas o contrário continua sendo a discrepância mais freqüente. O ideal, obviamente, é que o conjunto se harmonize. Não pode haver frustração maior do que tentar ler uma obra bem editada e descobri-la frágil em sua essência. (Tampouco o resenhista está isento de uma situação como essa. Via de regra, ele sempre torce pelo livro sobre o qual vai escrever: vamos lá, meu guri, ande, mostre-me a que veio e, sempre que possível, me surpreenda.)
O último dia de Cabeza de Vaca, sexto livro recém-lançado do paranaense Fábio Campana, vem num volume especialmente caprichado. Para embalar a trajetória ficcional de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, explorador espanhol do século 16 e o primeiro europeu a pôr os olhos nas Cataratas do Iguaçu, a Travessa dos Editores se esmerou na edição: capa dura com sobrecapa, papel de gramatura privilegiada, belas ilustrações reproduzindo gravuras antigas, fac-símiles de publicações de antanho, e todos esses detalhes convidando a uma viagem de volta ao passado. Jussara Salazar assina a arte e consegue reproduzir um estilo de encadernação que ainda freqüenta os sebos, mas raro de ser encontrado em livros mais recentes. A editoração de Geucimar Brilhador revela bom gosto e merece também ser destacada. Tudo, enfim, só faz aumentar a expectativa quanto ao que se encontrará pela frente.
Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca é personagem verídico. Movido pela ambição de enriquecer, deixou a Espanha e veio dar com os costados no Novo Mundo, primeiro na América do Norte, onde naufragou, foi feito prisioneiro de índios por três anos e, libertado, caminhou nove mil quilômetros de aldeia em aldeia até o México em busca da fonte da juventude. Essas peripécias foram relatadas por ele e publicadas sob o título de Naufrágios, livro que o tornou famoso na terra natal. Durante a viagem de volta à Europa, ouviu histórias sobre riquezas na América do Sul e mais uma vez se interessou. Conseguiu com sua rainha o cargo de Adelantado (governador) da Província do Prata, retornou ao continente americano, aportou na ilha de Santa Catarina, onde soube que Buenos Aires havia sido destruída pelos índios querandís. Decidiu então seguir a viagem por terra. Subindo a Serra do Mar e atravessando o território do atual estado do Paraná, alcançou a foz do rio Iguaçu, onde contemplou as cataratas, avançando até Assunção. A segunda parte da aventura americana também foi registrada em livro — Comentários — ditado por ele a Pedro Hernandez. Toda sua vida foi uma sucessão de fracassos e frustrações que culminaram com sua prisão, julgamento e condenação na Espanha, onde morreu.
O resumo acima encerra o lado histórico do relato de Fábio Campana. A porção ficcional fica por conta do narrador, padre Francisco Paniaguá, presbítero que acompanhou o Adelantado nos últimos dias de vida e registrou suas memórias num diário depois transformado em livro. Obra de leitura rápida, traz capítulos curtos dispostos em 131 páginas e estruturados de forma um tanto caótica. Já na introdução encontramos a justificativa: “Os escritos do diário do padre Francisco Paniágua não tinham ordem. Verdadeira miscelânea. Fragmentos de memórias que se confundem com as de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca”. Isto posto, a narrativa se arma como um quebra-cabeças. Campana não observa uma seqüência cronológica dos principais fatos e sonega do leitor algumas informações cruciais à compreensão do enredo. Um exemplo: o livro começa e termina com Don Alvar amargurado, reclamando justiça, mas em nenhum momento ficam explícitos os exatos motivos da condenação que o levou a se sentir tão injustiçado. O narrador, escrevendo sob forma de um diário, parte do pressuposto que o leitor já conhece ao menos parcialmente a biografia do homem de quem acompanha os últimos dias, e o problema fica então automaticamente sanado.
Campana foi muito feliz na escolha da linguagem. Entre usar um registro contemporâneo e ousar um estilo próximo do padrão de escrita do século 16, o autor opta por uma inflexão meio à la antiga de um léxico basicamente moderno. O resultado também está a serviço dessa volta no tempo à qual o leitor é convidado, mas não dispensa a fluidez na construção de frases curtas que privilegiam o discurso em ordem direta:
“A figura magra e sem cor, de desprezível palidez de enfermo, não condizia com a de fidalgo de Espanha, da estirpe mais nobre de Jerez de la Frontera, que saíra de San Lúcar de Barrameda com a esperança de fartar-se em fortuna e glória na descoberta de um Império que esperava fosse mais rico que o do México.
Cabeza de Vaca cruzara o oceano suportando com dignidade os extravios e as tempestades. Escapou às doenças. Ludibriou o escorbuto e a cólera que derrubavam dezenas de homens e que os levaram prostrados aos porões. Dali vinham os corpos que eram atirados aos peixes sem mesmo passar pela extrema-unção.”
Talvez por ter sido um religioso do século 16, o narrador evita se aprofundar em temas espinhentos, preferindo deixá-los subentendidos ou só enunciados. Para citar um exemplo, a devassidão que Francisco Peniágua diz ter encontrado em Assunção e que provoca nele um cataclismo íntimo é narrada com cuidadosa superficialidade. A um leitor do século 21, já acostumado à crueza de certos relatos, esse detalhe pode soar inconvincente. Mais uma vez, o que salva a história é uma correta contextualização: o livro é novo, mas deve ser lido como obra antiga.
O último dia de Cabeza de Vaca é uma narrativa peculiar. Contrariando o que parece ficar insinuado no início deste texto, Fábio Campana apresenta muito mais do que uma embalagem bonita e não tropeça no que ainda é essencial a um bom livro. O leitor agradece.