Aqueles olhos azuis me olhavam com uma tristeza tão grande que quase me afoguei. A tristeza asfixia. Pois foi isso. Fiquei ali, sem ar, olhando para aqueles tristes — mas tão tristes — olhos azuis… Demorou para a respiração voltar ao normal. Quando consegui, estava encharcada. Tonta, perdida, angustiada, sufocada.
O dono daqueles olhos cresceu à sombra do irmão mais velho, que tinha olhos cor de mel e uma alegria que contagiava a todos. Menos a ele. Porque ele se tornou uma sombra e, como uma boa sombra, vagou cinza pelo mundo. Até não agüentar mais. Até dar ouvidos e mãos aos pensamentos que não o deixavam em paz. Eram sem cor e tristes, mas tinham vozes tão fortes que chegavam a doer. A cabeça latejava como se martelos gigantes batessem compassados sobre o cérebro desprotegido. Pá!!! Pá!!! Pá!!! Vontade de furar o crânio para a dor escorrer ligeira. Tentou fazer com que as vozes parassem e, por isso, obedeceu.
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Quando comecei a ler Pérolas absolutas, de Heloisa Teixeira, fui tomada por uma tristeza incontrolável. Uma angústia, uma falta de ar. Demorei para terminar a leitura. Porque ficava sem ar, sem sono, sem direção. Com pensamentos tão distantes e tão diversos que me assustavam. Porque a cada página me lembrava daqueles olhos azuis e tristes que vi num sábado à tarde, no pátio da casa psiquiátrica.
A loucura aparece de várias formas. E assume várias vozes. Várias histórias. Várias vidas. E ninguém está imune a ela. É isso o que mais assusta. Ela nos rodeia, está sempre à espreita, esperando uma brecha para nos tomar de assalto. Lídice — ou Lídia — sabia disso. E já estava à espera. Afinal, a irmã gêmea, Lídia — ou Lídice — já havia se entregado. Era somente uma questão de tempo. Por isso, cuidava de arrebanhar para junto de si seus outros irmãos. Mesmo que não irmãos de sangue. Mas de perdas. Lídice, ou Lídia, era sempre a segunda. A gêmea que nasceu depois. A que teve de lutar com mais afinco pelo amor dos pais. A que teve de cuidar da mãe depois do abandono do pai e da irmã. Gostava de saber que havia outros segundos como ela. Outros desprezados e prestes a perder a razão, como ela.
Gostava particularmente de Camille Claudel. A escultora que foi aprendiz e amante de Rodin. Ofuscada pela genialidade do companheiro. Vivendo à sombra dele. Apaixonada até perder as forças. Até perder a família. Até perder a vida dentro de um hospício. Trancafiada por 30 anos. Pobre e louca. Mas também se apegou a Luiz Heinrich Mann. Escritor. Irmão mais velho de Thomas. Aquele que ganhou o Nobel. Foi assim que Heinrich ficou conhecido: o irmão mais velho do Nobel de Literatura. Sem emprego, sem dignidade, vivia dos cheques que o caçula lhe mandava, religiosamente. Morreu pobre. E sem o reconhecimento que almejou a vida inteira. Zelda Fitzgerald também fazia parte da sua lista de irmãos na desgraça. Esposa do grande Scott, queria ser tão grande quanto ele. Mas não era. E enlouqueceu. Lembrou-se ainda de Tiago Menor que, dizem as más línguas, era irmão de Jesus. O cúmulo das sombras. Era irmão do Salvador! E ainda tinha a alcunha de “Menor”.
Lídia/Lídice também era a segunda no coração do único homem que amou. Anatole. Conheceu-o aos 35 anos. A mesma idade em que Sofia o conheceu, dez anos antes. Tinha de encontrá-la. Por isso ligava para a “rival” sem dizer palavra. Só ouvir a voz da foto que já sabia decor. Até tomar coragem e marcar o encontro. Definitivo. Tinha de destruí-la e destruir-se em seguida.
O encontro aconteceu em um restaurante e foi cercado de mistérios. De reviravoltas e revelações. As duas são muito diferentes, mas também muito iguais. Lídia/Lídice viveu sem amor — da irmã gêmea, do pai, da mãe, louca também. E sentia-se sufocada por isso. Sofia foi muito amada pelo pai. E, por isso, sufocada. Até fugir de casa e entregar-se a um forasteiro grosseirão e se embrenhou pelos mangezais. Voltou somente depois da morte do pai.
A história das duas mulheres de Anatole é contada de forma que se assemelha a um surto esquizofrênico. Apesar de a história principal — a do encontro das duas “irmãs de sêmen” — acontecer em apenas um dia, parece que se passam anos e anos. Várias vozes falam ao mesmo tempo. Vários pensamentos vagam pelas páginas do livro. Quando o leitor acha que vai enlouquecer, ele também, tentando desvendar de quem é a voz que explica um assunto ou outro, Heloisa avisa: “Não adianta, você não vai conseguir. É impossível demarcar as fronteiras, traçar as linhas. Mais que impossível, é vão, insensato. Já não é preciso, não faz mais sentido, eu mesma deixei de reconhecê-las há muito. A elas me misturei de tal forma, e com tanta ênfase incorporei suas falas, que me desfiz, me anulei — me perdi. Esta é a síntese da loucura, sua face múltipla e definitiva. Todas nós falamos com a mesma voz” (p. 141).
As personagens acabam se autodenominando pérolas. Não tanto pela beleza. Não. Isso é muito óbvio. As pérolas, na verdade, são frutos da dor. Afinal, são formadas por grãos de areia que se infiltram na finíssima “pele” da ostra. Para se proteger, o molusco usa uma substância para cobrir esses grãos. São como a pele que se recompõe depois de um machucado. A pérola, então, pode ser considerada uma ferida cicatrizada.
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Naquele dia em que o encontrei, ele repetia em voz alta o que os pensamentos gritavam. Tal como Lady Macbeth. “Lava tuas mãos, vista teu camisolão, não te apresentes com o rosto tão pálido. Estou te dizendo, uma vez mais, ele está morto e enterrado. Não tem como sair da cova.” Tinha as mãos pequenas, delicadas e translúcidas. Cortadas pelas veias finíssimas. As mãozinhas se esfregavam, primeiro delicadas, como em um balé, depois vorazes, incontroláveis. Como se precisassem ficar cada vez mais transparentes até desaparecer escorrendo pelo ralo da pia. Os olhos azuis se fecharam, apertados, tensos. Mas as vozes, aquelas, não o deixaram em paz. Foi assim que se descobriu louco. E me olhou com aqueles olhos tristes.