Havia alguns anos, eu voava de Joanesburgo a São Paulo lendo Juventude, de J. M. Coetzee. Em dado momento, um sul-africano ao meu lado viu a capa e comentou: “not a happy author”.
Eu já sabia de toda a excentricidade de John Maxwell Coetzee, a começar pelo modo como assina o próprio nome nos livros, mas nunca tinha refletido sobre essa infelicidade. Realmente, a maioria dos romances de Coetzee carrega certa tristeza, melancolia, quando não o sofrimento ficcional em si.
Witold Walczykiewicz, pianista protagonista de O polonês, novo livro de Coetzee, diz em certo momento: “A felicidade não é o sentimento mais importante. Qualquer um pode ser feliz”.
Convidado para fazer um concerto em Barcelona, o músico se apaixona, à primeira vista e de forma avassaladora, por Beatriz, coordenadora do programa cultural que o contratou.
O problema não é apenas a forma como isso aconteceu, mas as condições. Eles estiveram juntos apenas uma única vez, no jantar pós-concerto, com outras pessoas. O pianista tem 70 anos. A espanhola, 49 anos, casada, dois filhos. Além disso, os diálogos se dão numa terceira língua, o inglês, o que muitas vezes causa incompreensão entre o casal de estranhos.
Como já relatado neste Rascunho na edição de julho, Coetzee lançou O polonês primeiro em espanhol, um certo protesto ao domínio da língua inglesa. Nem a edição espanhola nem o protesto tiveram grande repercussão. Foi a edição em inglês que mostrou ao mundo que Coetzee voltava aos seus melhores dias, com um livro curto, mas profundo.
O pianista é um personagem poderoso. Apesar do breve contato com Beatriz, ele passa a lhe enviar e-mails ousados e apaixonados. Recebe respostas curtas e evasivas, mas não desiste. Convida-a para vê-lo tocar em outra cidade espanhola, e ela vai. Diz que está organizando uma turnê no Brasil e quer sua companhia. Acaba vencendo a resistência dela ao ser convidado para passar alguns dias na casa de verão da família catalã em Mallorca, na Espanha, somente ele e Beatriz.
O inglês deles não é fluente o suficiente para que seus diálogos sejam claros. E Beatriz nunca parece empolgada com o polonês. Não aprecia o modo como ele toca Chopin, o considera um pouco rude, se não arcaico. Mesmo assim acaba aceitando intimidades em Mallorca.
Apesar de várias restrições a sua aparência, talento musical e herança cultural de uma Polônia decadente, ela ficou em dúvida até sobre a viagem ao Brasil. Provavelmente teria aceitado se Witold tivesse insistido mais.
A verdade é que a vida “perfeita” de Beatriz não a completa. Dorme em quarto separado do marido e sabe que ele tem aventuras amorosas. Até conhecer o polonês, Beatriz vinha resistindo ao assédio de vários homens. Tem curiosidade sobre os casos extraconjugais de suas amigas, mas falta-lhe coragem para fazer o mesmo.
Camadas emocionais
A parte final do livro traz camadas ainda mais emocionais, mesmo com a ausência de Witold. Ele deixou poemas em polonês para Beatriz, que não descansa enquanto não os tem traduzidos, para novas decepções. Ela também não vê grande qualidade na escrita do polonês, ainda que tenha contratado uma tradutora que não é especialista em literatura.
Beatriz tem o mesmo desconforto com a poesia de Witold. Lê tudo, mas questiona o porquê de o polonês usar uma arte que não domina para manter a sedução.
A verdade é que Beatriz construiu uma barreira emocional quase incompreensível, fruto de sua própria infelicidade. Apenas que, diferentemente de Witold, ela não tem algo que possa considerar mais importante que a felicidade, talvez daí sua amargura.
Do lado polonês, é um amor idealizado, unilateral. Suas falas são emotivas, aparentemente sinceras. Quanto mais se declara, mais parece haver distância entre ele e Beatriz, que não cede em sua frieza.
O polonês é um livro totalmente centrado em Witold e Beatriz, mas entre eles há mais silêncio e desencontros do que carinho e cumplicidade. As cartas não são respondidas, os poemas não comovem, os gestos não recebem reciprocidade.
Assim como nos principais livros de Coetzee, em O polonês a felicidade raramente aparece como estado duradouro. Coetzee escreve com uma clareza aguda, cortante, na maioria das vezes desconfortante. Talvez pareça um autor infeliz porque se recusa a buscar a narrativa onde tudo acaba bem.
Isso é reforçado pelas menções de Witold ao amor de Dante por Beatrice ao longo de O polonês. Os poemas finais que deixa para a amada catalã seriam o seu Vita Nuova.
A verdade é que o lançamento de O polonês em espanhol primeiro chega a ser irônico. Apesar de Coetzee ter o dialeto africâner como língua materna, sua carreira literária foi em inglês. E nessa língua ele foi o primeiro autor a vencer o Booker Prize duas vezes. Detalhe: o Booker Prize só premia obras escritas em inglês. O prêmio fez mais pela carreira de Coetzee do que o próprio Nobel. Além disso, a comunicação entre Witold e Beatriz seria impossível sem o inglês. Então, o protesto de Coetzee contra a língua inglesa, na verdade, tem um efeito contrário em O polonês, mostrando que o inglês ainda é a língua com o maior poder de comunicação.
Quando Witold disse que a felicidade não é o sentimento mais importante, no primeiro jantar em Barcelona, foi em resposta à pergunta se ele era infeliz quando jovem em seu país. Diante da surpresa dos interlocutores, ele completa: “Eu sou um músico. Para mim, música é o mais importante.”
Coetzee trabalhou de 1962 a 1971 na Inglaterra e nos Estados Unidos e trocou a África do Sul pela Austrália há mais de vinte anos. Os livros Infância e Juventude indicam que ele era infeliz quando crescia na Cidade do Cabo, em sua terra natal. Como raramente dá entrevistas, fica difícil lhe perguntar sobre a impressão de ser um autor não feliz. Mas a resposta parece estar em Witold. Para Coetzee, provavelmente, literatura é o mais importante.