A internet está repleta de ditas notícias sobre felicidade. Desde um top 10 de lugares para ser mais feliz no mundo até os maiores segredos para alcançar esse desejado estado de espírito. O tema, porém, é bem menos presente na literatura e uma busca mostra que a palavra tem ocorrência maior na estante de autoajuda. Começando por Triste de fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, aposto que sua estante é muito mais triste que feliz.
Índice médio de felicidade, do português David Machado, quase destoa disso — começando pela capa amarelo vibrante com uma kombi (e um quê de Pequena Miss Sunshine). O personagem principal, Daniel, tem um otimismo que chega a ser incômodo, que é ao mesmo tempo um misto de cegueira e ingenuidade e uma crença que o futuro guarda algo melhor — afinal, nada poderia dar errado na sua vida.
Daniel tinha o caminho perfeito traçado para sua vida, um plano descrito passo a passo em um caderno. Esposa, filhos, emprego bom, amigos. Até que uma crise econômica chega e leva embora seu trabalho em uma agência de turismo, setor supérfluo em uma sociedade com fome. O que no começo parece só uma vírgula se tornam longas reticências…
Aos poucos, Daniel perde sua referência. Sua esposa e seus filhos se mudam para o interior enquanto ele continua na capital para buscar um novo emprego. Almodôvar, um de seus melhores amigos, é preso, em circunstâncias mal explicadas, e se recusa a falar com ele. Outro amigo se recusa a sair de casa. Diferentes aspectos da sua vida desmoronam aos poucos.
O otimismo de Daniel fica explícito principalmente pelo seu índice médio de felicidade. O conceito lhe é apresentado pelo amigo Xavier (aquele que não sai de casa): “na verdade, baseia-se num questionário com uma única pergunta: numa escala de 0 a 10, quão satisfeito se sente com a vida no seu todo?”. A partir disso, é possível fazer uma média de felicidade de um país, uma lista que é citada no próprio livro.
E a ideia de Xavier vai ainda além. Para ele, não basta apenas ser capaz de contabilizar esse número (nem de pensar em tudo que deve ser levado em conta para esse cálculo), mas de usar esse número como base para uma vida melhor — “um homem muda-se para o país onde o Índice de Felicidade humano é igual ao seu, começou ele. Encontrando-se rodeado por pessoas que são, pelo menos em média, felizes na mesma medida que ele, o homem sentir-se-á mais integrado nessa nova comunidade, mais realizado com aquilo que é”.
Daniel começa então a pensar sobre qual seria seu índice. Mesmo sem emprego e longe da família, sua primeira resposta é 8,0.
Em entrevista ao jornalista Alexandre Lucchese, no jornal Zero Hora, David Machado explicou:
Minha intenção principal era falar sobre o tema da felicidade. Sempre me considerei uma pessoa feliz, e, nos últimos anos, surgiu a questão do que seria capaz de me tornar alguém menos feliz, pois já passei por momentos ruins suficientes, mas resisto com meu índice de felicidade mais ou menos intacto. Parto de um homem que sempre se sentiu mais ou menos satisfeito com sua vida, com escolhas organizadas em relação ao futuro, e o que precisa acontecer para que ele seja abalado. Enquanto escrevia, fui criando obstáculos, para ver quando esse personagem tombaria.
Um dos aspectos interessantes da obra é que, além de falar sobre si mesmo e sua resposta em relação à crise econômica do país, Daniel apresenta alguns personagens mais jovens, que têm outras maneiras de lidar com a situação. Vasco, filho de Almodôvar, começa a se envolver com venda de drogas, roubos e outros delitos. Flor, filha de Daniel, sublinha as palavras negativas que lê em matérias de jornal. Mateus, o filho mais novo, se esconde em um mundo de jogos digitais.
Uma das reviravoltas da narrativa acontece quando um site criado por Daniel, Xavier e Almodôvar encontra uma usuária. A ideia inicial deles era criar uma plataforma na qual as pessoas pudessem oferecer e pedir ajuda, criando assim uma comunidade de troca de favores para melhorar o mundo. Depois que entrou no ar, o projeto nunca foi para frente (sendo acessado apenas por alguns usuários com interesses pornográficos) até que uma senhora paraplégica de Genebra pede ajuda para viajar e visitar seu irmão que está internado em um hospital de Marselha.
Perante a ausência de ofertas de ajuda, Daniel e Xavier resolvem agir. Forma-se uma aliança improvável e uma road trip que revela mais sobre os personagens do que eles esperavam.
O diálogo
“Antes de mais, repara, Almodôvar, tu não estavas cá.” David Machado começa o livro com uma espécie de acusação de Daniel para seu melhor amigo, ausente física e afetivamente daquele que o personagem considera um dos piores momentos de sua vida.
Mais do que um relato ou uma confissão, Machado propõe uma estrutura complexa. Narrado em primeira pessoa, temos a voz do otimismo confuso de Daniel contando para seu amigo os acontecimentos e dificuldades que esse perdeu por estar na prisão.
Mas não acaba aí: em itálico, o leitor se depara com as supostas respostas de Almodôvar, quase como um amigo imaginário ou a voz da consciência da Daniel. A partir disso, o que poderia ser um monólogo se torna uma espécie de diálogo. Daniel reclama da ausência e do afastamento de Almodôvar (que se recusa a receber visitas), confessa seus sentimentos e se defende das escolhas quando se sente julgado.
Almodôvar é um personagem construído pela sua ausência. Nós leitores não o conhecemos, mal sabemos o que fez para ser preso. Conhecemos porém o vazio que deixou na vida do filho, da esposa e dos amigos. E ele não é a única ausência. Existe a ausência de empregos, família, amigos, lar e esperança.
De certa forma, o que vemos são personagens lidando com a mudança do tempo e a perda de certas ilusões que tinham com a vida e com o futuro. “As coisas ficaram muito difíceis muito depressa”, diz Daniel. E não são muitos que podem discordar.