Feito de memória

No romance “Micróbios na cruz”, Marcia Camargos produz ficção sem abandonar características de historiadora
Marcia Camargos: criadora de Formiguinha, personagem que vive entre a lucidez e a ingenuidade.
01/08/2005

A jornalista e historiadora Marcia Camargos é mais conhecida pelos seus projetos e obras de cunho histórico. Prova disso são os inúmeros prêmios que ela recebeu pelos livros Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana e A Semana de 22: entre vaias e aplausos, este último laureado pela Academia Paulista de Letras. Há uma característica comum a essas duas obras: a presença da memória nos relatos, outrora sisudos, históricos. Explico melhor. Embora essas duas palavras, memória e história, pareçam inerentes uma em relação à outra, as descrições históricas, grosso modo, primam pelo detalhamento técnico e deixam de lado os estados de consciência que integram todos os acontecimentos no entorno. Nos livros supracitados, a autora consegue aliar esses dois elementos e, por isso, consegue narrar a história sem assumir um tom professoral, por exemplo. Se você, leitor, chegou até aqui, há de perguntar por que cargas-d’água eu me esmero para falar dessas minúcias. A razão é que Márcia Camargos assina agora o romance Micróbios na cruz e, ao escrevê-lo, não fugiu das características inerentes do seu relato como historiadora; antes, adaptou alguns pontos para o campo da ficção.

A obra conta a trajetória da personagem Formiguinha, que cresce num momento muito peculiar do Brasil. Época, por exemplo, do início de uma série de mudanças de costumes na sociedade. Na verdade, esse tema já foi tratado em outras obras anteriormente. O que chama a atenção nessa narrativa é, sem dúvida, o ponto de vista da protagonista, que passa a relatar toda a história de acordo com seu repertório próprio de palavras, ilustrações, temores, crenças, dores, alegrias e tristezas. É assim que o leitor passa a sentir, junto com a narradora, cada passo adiante no seu desenvolvimento. E, desde o início, é pelos olhos dela que vemos e descobrimos o mundo que está ao seu redor. Formiguinha mora com os tios e com a avó em Belo Horizonte, e é feliz por isso. Logo no segundo capítulo, no entanto, ela vem a saber que tem um pai. Que tem família de verdade. Como ela mesma diz, “um novo personagem que entra na sua vida”. A surpresa rapidamente se transforma em tristeza ao saber que terá de trocar a casa da “Mãe Principal” pela casa dos pais verdadeiros, “num lugar sem nenhum dos cheiros que fazem parte de minha vida”, segundo suas palavras. Em linhas gerais, apesar desses acontecimentos iniciais, pode-se dizer que o romance tem aqui o seu verdadeiro start.

É a partir desse momento que aprendemos não só o objetivo da autora, mas também vemos como se dará sua materialização. Formiguinha discorre sobre suas impressões acerca da nova casa, que é, conforme suas palavras, enfiada no meio do nada e, também, o lugar onde ela conhece seus novos pais. De fato, em poucas páginas, ela consegue expor com clareza que se trata de uma família em plena ascensão social e que faz de tudo para manter uma condição estável de classe média. Entretanto, esse não é o ponto mais relevante do livro. Nesse mosaico realista da memória apresentado pela narradora, é a religião que emerge de maneira elementar nas lembranças da protagonista. Há sempre uma comparação e uma co-relação de todos os seus atos com o imaginário fortalecido pela crença católica, sempre ilustrado pela crucificação de Jesus Cristo.

Com efeito, são esses dados que compõem um conjunto dos valores estabelecidos na estrutura de toda a história, numa narrativa encurralada entre o temor e o tremor, o sentimento de culpa e a redenção. Engana-se, no entanto, quem pensa que Micróbios na cruz promove algum tipo de cruzada religiosa ou de acerto de contas com uma infância vivida sob um rígido regime católico. Embora existam momentos de evidente crítica à criação a que foi exposta, Formiguinha não faz isso de maneira proposital, como se fosse um arremedo do filme A má educação, de Pedro Almodóvar. A riqueza do livro é proveniente justamente de uma originalidade da narradora; para ser mais específico, da lucidez escondida por trás de sua tenra ingenuidade. Em última análise, há um paradoxo, uma vez que a história se torna mais verossímil particularmente porque é narrada por uma criança, que, se não tem as artimanhas e o repertório refinado de um adulto, também não é capaz de esconder suas leviandades ou de maquiar seus sentimentos com as desculpas de sempre. Aliás, é totalmente o contrário que ocorre. Inúmeras vezes a protagonista tece, sem querer, comentários que mostram as imperfeições (naturais, diga-se) de seus pais, bem como os problemas de uma educação calcada na mais na aparência do que na realidade.

O livro avança. Formiguinha, que já não é mais chamada assim desde certa altura da história, começa a amadurecer. Contudo, sua forma de relatar os fatos não perde o viço, mas, sim, ganha novos detalhes graças a uma noção mais clara do passado e do presente. Ao falar do que deixou para trás, por exemplo, isso fica evidente: “Sobre minhas antigas mães, tio e primos, prefiro manter silêncio, aprendi que pensar neles é como tirar casquinha de ferida, que sangra de novo, dói e leva um tempão para cicatrizar”. Essas revelações apontam como a memória da protagonista era marcada por determinados acontecimentos que, de uma hora para outra, apareciam novamente, como os temores de assalto (quando o pai teria de recorrer ao revólver que estava dentro do cofre com código especial, mas que ela sabia de cor), ou como sua relação com a Mãe Verdadeira, que estava sempre ocupada porque tinha de trabalhar e não era rica, nem sócia da Light.

Ainda sobre a forma como ela se expressa no livro, é notável perceber como, também sem querer, a personagem criada por Marcia Camargos reitera o discurso dos pais tanto nas palavras como nas ações. Das ordens às broncas, tudo é registrado e passível de reprodução, o que, por sua vez, explica a importância da religião na vida da protagonista. Ou seja, o medo não é só porque se trata da religião católica, mas, sobretudo, porque a mãe o pai dão muito valor aos costumes e às doutrinas da Igreja. Aos poucos, no entanto, mesmo que timidamente, Formiguinha inicia um processo de questionamento a respeito do que observa. Na preparação para a primeira comunhão, é ela a aluna que mais questiona as professoras. Em outra passagem, essa ressalva fica ainda mais óbvia: “Remexo na cama, o sono não vem e me pergunto por que Deus, que é onipotente e tudo pode, criou o Bom e o Ruim, o Moral e o Imoral. Se é justo e sábio, como pôs na Terra aqueles pretinhos encardidos, feios e doentes, com melecas no nariz e moscas-varejeiras no buraco imundo e fedorento no arraial perto da Fazenda da minha tia, e ao mesmo tempo caprichou na Audrey do Big Valley, loira, alta, inteligente (…)”.

Para o bem e para o mal, Marcia Camargos inclui em Micróbios na cruz vários acontecimentos políticos da década de 1960. Assim, da morte de Kennedy ao início da ditadura, o leitor toma conhecimento desses fatos pelas palavras da protagonista — o que não deixa de ser um alívio, já que ela é criança demais para ter a argúcia de querer ensaiar uma reflexão sobre o golpe militar, por exemplo. A personagem principal se limita a relatar o que vê e deixa para os leitores a escolha por uma conclusão. Outro trecho interessante está na forma como ela lida com o que é proibido. Num primeiro momento, o temor se faz presente graças à herança religiosa; mesmo assim, há uma clara atração pelo que não deve ser lido, como no caso das obras de Monteiro Lobato. O mesmo se dá com certos sentimentos negativos, como a inveja da amiga que é Filha-Única e que mora num apartamento com um quarto imenso só dela, que é rica e talvez sócia da Light porque a mãe nunca reclama do desperdício de refrigerante ou de Q-Suco.

Mais do que um romance que traz a perspectiva infantil sobre os eventos históricos e sociais, Micróbios na cruz apresenta uma literatura cuja principal matéria-prima é a memória, capaz, pelo que se lê, de resgatar lances jogados em recantos insondáveis da mente, lembranças que não são acionadas a partir de um documento, a partir de uma data, mas, sim, por causa dos cheiros, dos sabores, das dores e das cicatrizes. Se não é um romance histórico, é, certamente, um romance de memória.

Micróbios na cruz
Marcia Camargos
Companhia das Letras
119 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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