Uma loja de CDs é uma arapuca. Pagodeiros, cantores populares e bandas baianas com suas dançarinas rebolativas lançam seus olhares sensuais sobre nós, pobres consumidores, e numa espécie de súplica visual imploram que os levemos para casa. É a expressão “seduzir o consumidor” aplicada. Mas é preciso restabelecer a consciência e se encaminhar para o canto mais vazio da loja, onde raros consumidores se aventuram, o cantinho dos desconhecidos. Foi lá que encontrei o CD Além de Mim, da paranaense Eliane Bastos. Estranhamente o disco abre com o clássico O Bêbado e o Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Digo estranhamente porque depois que Elis Regina gravou essa música, poucos ousaram incluí-la em seus repertórios, tamanha identidade de Elis com a canção.
No entanto, Eliane Bastos topou a empreitada corajosa. Compará-la a Elis é injustiça. Eliane demonstra personalidade, competência e estética vocal em outras regravações como De Volta pro Aconchego, de Dominguinhos e Paixão, de Kledir. Mas a artista se mostra mais à vontade com músicas inéditas de compositores paranaenses. Da simbiose resulta o primor, como em Lua Sobre a Mesa, onde o compositor Graffite apresenta mais uma versão para o tema universal e seus desencontros: “te amo com toda pureza que uma lágrima cai (…) num outro tempo, nu noutra cama um movimento novo/que chama pra história de nós, me dá saudade a sós”. E segue: “vida real está em mim/verso fatal: nunca sim!.”
Em Samba do Erval, também de Graffite, a simplicidade poético-musical é encantadora. O compositor revive a inocência da infância “…a rua onde mora…onde a paz que eu acredito e o jeitinho de você/teu olhar que é mais bonito, possa um dia aí me ver.” Graffite buscou a mesma fonte, a infância e seus “sabores”, para compor Eid: “lembro dos meninos da minha rua, das meninas quase nuas/lembro você que não me deixava ser” e revela o sonho do compositor menino: “hei de ter/hei de a fama conhecer/hei de levar comigo.” Esta música tem a participação vocal de Plínio de Oliveira, que aliás fez arranjos para todo o disco, além de tocar piano acústico e teclados em todas as músicas.
Onde Ela Mora, do paranaense Lápis, pai do Graffite, parece um acalanto pela melodia delicada que sustenta a potente voz da cantora. Lençol de Flores, opulenta parceria entre Lápis e Paulo Vítola, é o grande momento do disco com arranjo de cordas perfeito, interpretação imponente e letra sensível: “ah, quantas flores no lençol/que se espalharam todas pelo chão…ah, quantas dores no lençol/gritos sorrisos, dentes, minhas mãos.” O CD de Eliane Bastos é uma concepção musical muito feliz. A qualidade é rara para uma produção independente, já que o trabalho dos músicos é sempre feito com o “taxímetro” ligado, ou seja, os custos de aluguel do estúdio exigem um ritmo desumano para quem quer o melhor. No entanto, a qualidade só é possível quando há gente muito competente na produção. Jóias como este CD estão em qualquer loja de CDs, basta saber olhar, neste caso, ouvir e assim não cair na tentação fácil dos olhares gulosos.