De todas as guerras que houve no Brasil, talvez a do Contestado tenha sido a mais equivocada. Os motivos pelas quais ela aconteceu são relativamente fáceis de serem encontrados: um governo que desprezou a população local para favorecer uma empresa estrangeira, dois estados que aproveitaram uma possibilidade de tentar aumentar seus territórios, e o povo desamparado de todos os poderes públicos e pela igreja, que acreditou em falsos profetas e criou uma monarquia celeste na Terra. Ainda que os motivos sejam relativamente simples, muito gente sofreu muito e foi morta por conta desses equívocos. E como essa história ainda é pouco conhecida dos brasileiros, qualquer livro que lance luzes sobre ela pode nos ajudar a refletir e quem sabe impedir a repetição dos equívocos.
Por isso, é muito bem-vinda a iniciativa de Walmor Santos que, após 15 anos de pesquisas sobre o tema, nos presenteia com esse Contestado — A guerra dos equívocos — O poder da fé. Primeiro volume de uma série cujo segundo título já está nomeado — A fé no poder —, O poder da fé se debruça sobre um dos aspectos da Guerra do Contestado, nesse caso o poder da religião, para contar a desgraça que foi esse conflito na divisa entre o Paraná e Santa Catarina, acontecido entre 1912 e 1916. E o autor consegue contar essa guerra com muito talento, tornando o livro uma contribuição importante para o conhecimento do tema.
Para contar esse lado do conflito, Santos pega um personagem que realmente existiu, o frei franciscano Rogério Neuhaus, conhecido como “o apóstolo do planalto catarinense”, por sua atuação na região. A esse personagem ele soma outro, um Marcolino de batismo, mas rebatizado Germano após ser iniciado na Ordem Franciscana, que será o contraponto entre a religião formal representada pelos franciscanos e o messianismo e fanatismo caboclos dos que seguiram os falsos profetas que pela região apareceram, dois João Maria e um José Maria, entre 1844 e 1914. O contraponto é muito interessante, pois é possível notar com clareza que, pelo menos na ficção, frei Rogério, retratado acamado em seus últimos dias de vida por conta de um câncer no intestino, e lembrando dos fatos daquela guerra equivocada, apesar de franciscano e de ter feito o juramento de estar junto aos pobres, não estava lá. Quem estava, segundo o frei, foi Germano, que abandonou a vida eclesiástica antes de se tornar padre para viver junto aos excluídos e tentar fazer alguma coisa para impedir a desgraça anunciada.
Céu na Terra
Germano é o filho típico da região. Nasce em uma família de caboclos que ocupava um pedaço de terra qualquer, sem escritura. É “adotado” pelo frei Rogério como iniciante na vida monástica e com ele segue para a missão dos franciscanos. Lá recebe educação, a roupa típica dos franciscanos e prepara-se para ser ordenado padre. Mas lhe assola a visão de João Maria, seu padrinho de batismo, e quando ele escuta a notícia de que o “santo” voltou, ele foge dos franciscanos e embrenha-se na região do conflito. Germano, nessa viagem, descobre que seus pais foram talvez mortos pelos jagunços da Brazil Railway Company, liderados por um tal de Chicão. A partir desse momento, Germano decide permanecer com os que a história oficial chamou de revoltosos por tentarem fundar uma monarquia celestial na Terra. Seus sentimentos se dividem entre ser puro como São Francisco e doar-se por inteiro aos destituídos ou dar vazão a seus desejos de vingança. Há também as mulheres que fazem a sua vocação ser sempre posta em tentação: Chica Pelega e a caingangue Mariana, duas mulheres fortes que vivem junto aos “rebeldes”.
E é alternando as lembranças de Frei Rogério e as experiências de Germano que Walmor Santos vai contando as desgraças daquele povo. Não vale a pena entrar nos detalhes do que foi a Guerra do Contestado aqui, pois A guerra dos equívocos consegue contar isso. O que se destaca no livro de Walmor é o conflito entre o poder estabelecido, ainda que supostamente de origem divina, representado pela Igreja Católica e seu apoio dado às instituições governamentais (marcante é a cena em que frei Rogério abençoa as armas que invadirão o último reduto dos caboclos ao mesmo tempo em que seu pupilo Germano pode ser morto por elas), e o poder do messianismo. Para aquela população de excluídos, os profetas eram os verdadeiros representantes de Cristo e de Deus na terra. E nesse confronto entre o poder adquirido e o poder divino, frei Rogério percebe, no fim de sua vida, que Germano era quem tinha feito a opção correta, de permanecer junto aos excluídos. Felizmente, para o leitor, Walmor consegue dizer isso sem resvalar na pieguice do justo e do injusto, sem maniqueísmo entre o bom e o ruim. Ele apenas relata os últimos momentos de um religioso que percebe que a opção pelo poder afasta a Igreja do povo.
Síntese
Outro ponto forte do texto de Walmor é sua capacidade de síntese. Em um livro relativamente curto, ele consegue elencar os principais fatos daquela época, como a guerra, os conflitos, a fundação de cidades pelos caboclos foragidos, a disputa territorial entre Paraná e Santa Catarina, sem alongar-se em detalhes burocráticos, mas sem esquecer-se dos pontos importantes. E, ao entrar nesses pontos, Walmor faz a ponte entre o Contestado e Canudos, tão distantes geograficamente, mas muito próximos em seu tempo, em suas razões e nas suas conseqüências. Ao fazer essa aproximação, relembramos que quem não conhece a sua história corre o risco de repeti-la. Infelizmente, Canudos não deu lições o suficiente para os governantes da época, e o medo é que ninguém se lembre delas para impedir um novo acontecimento.
Vale o parabéns ao trabalho de Walmor que, além de fazer um bom livro, com um texto envolvente e que nos faz querer saber se houve a chance de redenção para os principais personagens, pesquisou muito sobre o tema do Contestado. O autor conseguiu, 15 anos depois de iniciada sua pesquisa, produzir um relato ficcional que, com os pés enraizados na vida real, consegue dar dimensão humana a um conflito que merece ser mais bem estudado. Que o segundo livro, A fé no poder, venha logo.