Por Nelson de Oliveira & Stéphane Chao
Choque de realidade: grandes empresas mandam seus executivos fazer imersão em casas de periferia. Esses são o título e o subtítulo de uma matéria publicada recentemente na revista Época (9.2.2004). Segundo a jornalista responsável pelo texto, profissionais muito bem remunerados, que até ontem faziam imersão apenas nos Estados Unidos e em outros países do Primeiro Mundo, para apreender a sua língua e a sua cultura, hoje fazem isso em favelas. Mas não é o interesse pela sorte dos miseráveis que move tais pessoas. O objetivo é outro: descobrir quais são as reais necessidades de consumo da classe C e D, a fim de que as empresas para as quais esses executivos trabalham possam melhorar o seu desempenho comercial.
Os escritores do mundo todo têm muito o que aprender com a iniciativa comentada na matéria: “Juliana Azevedo Schahin, de vinte e oito anos, prendeu as longas madeixas loiras num rabo-de-cavalo, tirou os brincos chamativos, dispensou a maquiagem e a bolsa e entrou num táxi rumo a uma favela urbanizada na periferia de São Paulo. Durante uma semana praticamente não trocou a calça jeans e a camiseta que usava no primeiro dia, para não constranger a dona da casa que a hospedou. Diretora de marketing de fraldas e absorventes da multinacional Procter & Gamble, Juliana não estava a passeio. Participava, animadíssima, de um programa idealizado para que os executivos da empresa mergulhem na dura realidade da classe C e D, com renda familiar mensal média de R$ 927 e R$ 424, respectivamente. O objetivo é descobrir o que consomem, como agem e com o que sonham os pobres. Embora famílias da classe C, D e E correspondam à maioria da população brasileira, sua realidade é pouco conhecida pela classe A. Por isso, grandes empresas como a Procter estão investindo em estratégias de aproximação desse potencial e nada desprezível contingente consumidor. Promovem imersões em casas de periferia, participações em festas populares e até reality shows em que espiam residências de classe C”. Está lançada a idéia: por que os canais de tevê dos quatro cantos do planeta não organizam, nos respectivos países, um Big Brother só de miseráveis? Três famílias instaladas num barraco de dois metros de largura por três de profundidade: sucesso de audiência na certa.
A história do surgimento e da evolução das cidades é longa e sinuosa, ela atravessa os séculos e os cinco continentes. A história do surgimento e da evolução das favelas é curta e retilínea. Não havia favelas nos arredores de Mênfis ou de Tebas, no Antigo Egito. Tampouco nas proximidades do Partenon, em Atenas, ou do Coliseu, em Roma. Não se tem notícia de barracos alinhados ao longo da Grande Muralha, na China. Também não havia favelas na Europa medieval nem na renascentista: Giotto e Dante jamais tiveram que se preocupar com elas. Ao desembarcar em Calicute, Vasco da Gama não encontrou favelas nem favelados. Nem Colombo, ao descobrir as praias da América. No passado houve senzalas, quilombos e cortiços, não favelas. Estas são fenômeno recente, típico da era industrial e da periferia do capitalismo: pertencem ao nosso tempo, bem como os profissionais de marketing, e a seu respeito somente os nossos escritores estão capacitados a discorrer. Como fez John dos Passos, em Brazil on the move, livro que comenta diversos aspectos da realidade brasileira por volta de 1948. Dos Passos, no capítulo sobre as favelas (cujo título-pergunta, The favela: symbol of the new Brazil?, já diz muito aos brasileiros de hoje) questionava-se prudentemente se o que se desenrolava diante dos seus olhos era apenas um grave problema de saúde pública, como afirmavam os médicos sanitaristas da época, ou o florescimento de uma nova civilização, produtora de sua própria cultura e criadora de suas próprias leis.
Segundo a definição dos dicionários e das enciclopédias, favela é o núcleo de habitações rústicas e improvisadas nas áreas urbanas ou suburbanas, em locais sem melhoramentos públicos (geralmente nos morros), sobre terrenos de propriedade alheia, privada ou estatal, ou de posse não definida. No início, favela, para as classes mais favorecidas, era sinônimo de promiscuidade, penúria e insalubridade. Um século de evolução mudou esse quadro. Hoje em dia há favelas e favelas. Os barracos que compõem as favelas mais pobres são construídos com restos de madeira e outros materiais, em certos casos até mesmo com alvenaria, mas sem sistema de saneamento básico nem energia elétrica, caracterizando-se pelas condições de vida extremamente precárias. Já as favelas menos pobres, como a da Rocinha, no Rio de Janeiro, com mais de 150.000 habitantes, e a de Heliópolis, em São Paulo, com mais de 80.000 mil habitantes, são verdadeiras minicidades, com escola, posto de saúde, o seu próprio jornal e a sua própria emissora de rádio e de tevê, em cujos barracos é fácil encontrar água encanada, televisão, computador e antena parabólica. São as neofavelas.
Para o escritor Paulo Lins, a neofavela está para a favela assim como o quilombo um dia esteve para a senzala. Neo ou não, o fato é que hoje há mais de 16 mil favelas no Brasil, formadas por quase dois milhões e meio de domicílios. A origem dessas comunidades remonta ao surgimento da favela da Providência, sobre o Morro da Favela, situado entre o centro e o porto da cidade do Rio de Janeiro. Isso se deu há mais de cem anos, no final do século 19 e início do 20. Curiosamente a famosa Guerra de Canudos — imortalizada na obra-prima de Euclides da Cunha, Os sertões —, apesar de ter acontecido tão longe dali, no sertão da Bahia, está ligada à formação das primeiras favelas cariocas.
No seu Pequeno histórico das favelas do Rio de Janeiro, as pesquisadoras Lilian Fessler Vaz e Paola Berenstein Jacques resumem o fato da seguinte maneira: “Essa história remete a 1897, quando um grupo de seguidores do líder religioso Antônio Conselheiro, estabelecido no Arraial de Canudos, no sertão nordestino, são considerados fanáticos, monarquistas e ameaça à segurança da recém-instituída República. Vários ataques são realizados ao reduto de maltrapilhos, até que na quarta tentativa um pelotão de oito mil homens o destrói inteiramente, massacrando todos os seguidores. Esse episódio foi relatado no clássico Os sertões, de 1901, escrito por Euclides da Cunha, que, como correspondente, descreveu não apenas a guerra, mas o sertão, o vilarejo e o reduto rebelde: o morro que contornava Canudos, conhecido como Morro da Favela. Em 1897, os soldados retornam à então capital do país, Rio de Janeiro, onde permanecem acampados em praça pública, reivindicando sua reincorporação ao exército. As autoridades militares permitem a ocupação do Morro da Providência, situado atrás do quartel-general. Vários barracos de madeira são construídos e os novos moradores passam a chamar o morro de Morro da Favela, em alusão ao outro, de Canudos. A palavra favela passa de estatuto de nome próprio ao de substantivo, nos jornais locais, por volta de 1920. A palavra designa a partir de então todos os conjuntos de habitações populares toscamente construídas, por via de regra nos morros, que se espalham pelo Rio de Janeiro e depois pelo país todo”.
As primeiras favelas surgiram do choque de forças desencadeado pela abolição da escravatura e a conseqüente substituição do trabalho escravo pelo assalariado, gerando grande contingente de pobres e desempregados. Isso, no momento em que ocorria a decadência da cafeicultura e a explosão urbana e industrial. Diferente do que acontece hoje, no início do século 20 a concentração dos pobres deu-se no centro das capitais, principalmente na cidade do Rio de Janeiro e na de São Paulo. Com isso multiplicaram-se os cortiços: casas e sobrados superlotados, mal iluminados e em péssimas condições de higiene. Mas não tardou e o poder público decretou guerra aos cortiços, demolindo casas, erguendo edifícios, abrindo avenidas, redesenhando e valorizando o centro das capitais, processo que expulsou os desfavorecidos do núcleo urbano rumo à periferia e aos morros. Via de regra, nos bairros mais próximos ao centro, as antigas mansões de estilo colonial, baixas e ajardinadas, desapareceram quase completamente.
As capitais passaram a ser reformuladas para receber a frota de carros que a recém-chegada indústria automobilística começava a despejar no Brasil. A política que privilegia o transporte individual em vez do transporte público vem dessa época. É dos anos de 1930 a frase histórica do prefeito Prestes Maia, adiando a implantação do metrô e promovendo a construção de avenidas perimetrais, túneis, viadutos e radiais em São Paulo: “O metrô está certo como transporte, mas errado enquanto urbanismo”. Será que é por essa razão que as favelas, principalmente as localizadas em morros, são estruturalmente antipáticas ao automóvel? Parece que sim, ao menos no plano das metáforas que iluminam as ações políticas e sociais.
Dos vários temas possíveis para uma antologia de autores brasileiros — carnaval, futebol, bandidagem, cangaço, sertão nordestino, etc. —, o da favela foi o escolhido por ser, dentre os estereótipos pitorescos e folclóricos de forte apelo no mundo todo, o mais apto a revelar duas faces distintas do Brasil: a lírica e a trágica. De qualquer maneira, o que queremos com esta antologia é justamente ir muito além do mero estereótipo difundido, por exemplo, por filmes como Orfeu (refilmagem de Orfeu negro, dirigido em 1959 por Marcel Camus), e, mais recentemente, Cidade de Deus, que em 2004 concorreu a quatro Oscars. Ou seja, desejamos nos aprofundar o máximo possível na complexa estrutura mitológica que a favela ganhou principalmente nas duas últimas décadas, com a expansão do tráfico de drogas. A favela é hoje, para a literatura urbana brasileira, o local da pura manifestação dos instintos e das pulsões, principalmente do sexo, da violência e do êxtase (por meio das drogas). Por ser o novo inconsciente urbano, ela propõe à metrópole em que está inserida e ao imaginário do homem de classe média o seu jogo de sedução e repulsa, compreensão e incompreensão, vida e morte. No plano mítico e simbólico, entre a cidade e a favela parece dar-se o eterno cabo-de-força histórico que sempre houve entre a cultura e a barbárie.
Olhando para trás, à procura dos primeiros autores que trataram, com conhecimento de causa, da periferia e da favela, quatro se destacam, todos eles filhotes legítimos ou bastardos do Aluísio Azevedo d’O cortiço: Lima Barreto (1881-1922), Antônio Fraga (1916-1993), Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e João Antônio (1937-1996). Lima Barreto foi dos primeiros escritores que, tendo nascido mulato, pobre e enfermiço como o mestre Machado de Assis, diferente deste ao longo da vida não se esforçou para livrar-se dos traços suburbanos típicos da sua classe social. Leitor atento dos russos — principalmente de Dostoievski —, Barreto cultivou inclusive o desleixo estilístico, antiacademicista e pouco aristocrático, para melhor representar o mau gosto das cenas que presenciava nas ruas da periferia do Rio de Janeiro. Foi dos mais finos moralistas que a literatura brasileira já teve. Nas suas crônicas, nos seus contos e romances conseguiu expor e criticar de maneira objetiva, sem jamais abrir mão da ironia e do humor, as mazelas da sociedade de seu tempo, entre as quais o drama da pobreza e do preconceito racial. Antônio Fraga e João Antônio seguiram os seus passos para longe do centro urbano, rumo à periferia, na direção do aluguel mais barato, da gíria, do contato com os pobres, com os marginais, com os excluídos da sociedade de consumo. O primeiro é o autor da bem-humorada novela Desabrigo, escrita em quatro dias e publicada em 1945, feita de fragmentos sem pontuação alguma, que se intercalam com citações extraídas das mais diferentes fontes. O segundo é autor de dezenas de contos nos quais fundiu a linguagem das ruas com a da alta literatura, protagonizados por boêmios, prostitutas, gigolôs, artistas decadentes, jogadores e malandros de variada espécie. Já Carolina Maria de Jesus difere desses três não só na condição sexual, mas por ter sido semi-analfabeta e jamais ter tido outro emprego que não o de catadora de papel. Moradora da paulistana favela do Canindé, num barraco de treze metros quadrados, Carolina ficou mundialmente conhecida na década de 60, graças à edição dos diários que manteve entre julho de 1955 e janeiro de 1960, publicados sob o título de Quarto de despejo.
Não é exagero dizer que a idéia que nós, cidadãos de classe média letrados e bem nutridos, fazemos da favela é na maior parte do tempo falsa e distorcida. Ou seja, a imagem de indigência e violência que guardamos da favela é outro estereótipo, outra construção ideológica veiculada pela televisão e pelos jornais. Nós raramente subimos o morro para conhecer as reentrâncias culturais dessas comunidades, da mesma maneira que raramente chega até nós a favela dos favelados, dos seus verdadeiros habitantes. Dos livros sobre esse tema, publicados no Brasil e em todo o Terceiro Mundo, quantos de fato foram escritos por autores que procuraram abordar a partir de dentro o mundo dos excluídos? Pouquíssimos. Entre nós, além dos já citados Lima Barreto, Antônio Fraga e João Antônio (que não escreveram diretamente da favela, mas dos seus arredores) e Carolina Maria de Jesus (esta, sim, testemunha ocular do nascimento da nova civilização, como diria Dos Passos), temos o caso de Paulo Lins, com o best seller Cidade de Deus (que deu origem ao longa-metragem), e de Ferréz, com Capão Pecado e Manual prático do ódio. É claro que seria bastante ingênuo da nossa parte afirmar que a realidade da favela só poderia ser representada literariamente por alguém da própria favela. Na arte e na literatura as coisas não funcionam de maneira tão mecânica.
Mas o fato é que até agora nenhum autor do centro, dos bairros de classe média ou alta, conseguiu fugir totalmente do estereótipo e registrar a verdadeira face desse universo periférico. Ou as verdadeiras faces — o plural parece soar melhor, pois, como no Poema sujo, de Ferreira Gullar, intuímos que há muitas favelas numa mesma favela, muitos favelados num só favelado. Esse é o motivo de nós encararmos a organização desta antologia como um verdadeiro desafio. São justamente as múltiplas falas da favela, as suas incontáveis faces — a lírica, a alegre, a violenta, a trágica, a mágica, a melancólica, a jocosa, a dinâmica, a arcaica, a contemporânea, entre outras —, que procuramos reunir com a ajuda de escritores das mais diferentes procedências (do centro e da periferia), donos de estilos e cosmovisões os mais diversos. Muitos desses autores moram ou moraram em favelas. Outros, dada a seriedade de seu projeto literário, já experimentaram a mesma imersão comentada no início deste texto, porém não com o objetivo de no futuro melhorar as vendas de tal absorvente ou de determinado xampu.
Como não podia deixar de ser, a favela da indigência, da bandidagem e do tráfico de drogas está aqui, com sua sombra perversa. Mas também estão presentes neste livro os contornos humanos da outra favela, da favela cheia de dignidade e de jogo de cintura, muito maior e mais instigante do que essa que tanto tem freqüentado as páginas policiais e o cinema brasileiro.
Escritores confirmados: Alberto Mussa, Cecília Prada, Chico Lopes, Fernando Bonassi, Ferréz, João Anzanello Carrascoza, João Paulo Cuenca, Luís Marra, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Sérgio Fantini e Wander Piroli.