Aventurar-se na tradução do Fausto é tarefa que poucos ousaram. Em nossa língua são três as célebres traduções: a de Agostinho D’Ornellas, a de Jenny Klabin Segall (que agora 40 anos após a sua finalização, ganha edição completa e devidamente cuidada pela Editora 34) e mais recentemente a de João Barrento. Fausto, o Doutor, ao ocupar-se na tradução para o alemão das primeiras palavras do Evangelho segundo São João nos parece mostrar o quanto de escolha transparece em uma tradução quando ele pretende “Verter o sagrado original/ no meu tão amado idioma alemão”. As exigências que se colocam a qualquer tradutor estão aqui, de certa forma, poetizadas: o estatuto de sagrado concedido ao texto original (mesmo não sendo um evangelho) e o amor à língua a qual se pretende transpor o texto. Embora a carreira de tradutor dure apenas umas poucas linhas em Fausto, pois logo depois ele há de ter com o espírito maligno de Mefistófeles, Goethe parece precaver os aventureiros que pretendem verter o Summa Summarum de sua vida para outra língua.
A primeira das traduções para o português, publicada integralmente em 1873, teve como grande entusiasta o tradutor português Paulo Quintela; a segunda, nos chega agora comentada e preparada pelo professor do departamento de Letras da Universidade de São Paulo, Marcus Mazzari. A terceira traz como defensor e comentador o próprio tradutor, João Barrento, cuja bagagem em traduções do titânico poeta já era conhecida por traduções como a tragédia Torquato Tasso, também de Goethe.
Quintela elogiava o tratamento dado pelo precursor das traduções do poema-tragédia de Goethe, embora ressaltasse a necessidade de uma tradução “científica” do mesmo. É nessa esteira, me parece, que poderíamos encaixar as duas traduções posteriores. Ter em mãos as três traduções é um privilégio que qualquer leitor ávido do autor de Werther deveria ao menos almejar. Cada uma a sua maneira nos traz aos olhos uma série de preocupações intrínsecas à obra fáustica, que deixam transparecer as metas e as características de cada um desses três tradutores.
Se Agostinho D’Ornellas pode por vezes ser considerado o mais prosaico dos três, é também aquele que por vezes transpõe o texto de Goethe para algo cuja verve poético-lusitana é, em muitas passagens, inigualável (a ponto de Paulo Quintela a considerar não mais como uma tradução, mas como “uma obra de nossa literatura”). Mas não podemos observar nela uma proximidade muito grande com o texto. O afastamento que Agostinho D’Ornellas nos coloca em sua tradução (à maneira de muitos tradutores francófonos) se faz como se o intento fosse o de fazer não um monumento erigido para a obra em si, mas para a língua que ele parece tanto amar: o português. Armado de um amor ao autor alemão, conhecimento de sua língua materna e nada mais, Agostinho terminou a segunda parte do livro e a dedicou “À sua majestade Imperial/ O senhor D. Pedro II/ Imperador do Brasil”, o que deixa claro a crença na boa confecção de sua tarefa. É claro que com as novas exigências de rigor e as condições de acompanhamento do texto germânico, esta primeira tradução caiu em desuso com muita facilidade e foi necessário que Paulo Quintela a fizesse retornar à cena no século 20 — um trabalho que não foi, segundo ele, “justamente compreendido e apreciado na sua indigente magnitude, de verter para o português a maior e mais difícil obra da literatura germânica”.
As outras duas traduções, cada uma a sua maneira, se ocuparam de verter o mais rigorosamente o original alemão em termos de métrica e estilo de texto. O texto de Jenny Klabin Segall traz muito da aspereza invulgar e da métrica cuidadosa que Goethe colocou no texto. Como grande tradutora dos textos da tragédia clássica francesa, ela sabia, como poucos, verter e esculpir o texto no intento de manter a sua configuração original.
Em consonância com as melhores edições do mundo, o arsenal das notas do professor Mazzari (a quem devemos a tradução de Peter Schlemihl, de Chamisso) traz esclarecimentos de toda sorte, notas que auxiliam o leitor iniciante, esclarecem dúvidas de certa profundidade e apontam caminhos para os mais íntimos da obra. Ele não só a apresenta, como faz um trabalho de arqueologia literária ao tentar libertar a tradução dos erros e abusos das edições anteriores, que não só não respeitaram a tradução, como não respeitaram a divisão do texto de Goethe. Limpar o texto de todos os prejuízos causados por suas edições anteriores é um trabalho que não só devolve à tradução a sua grandeza original, como permite o cotejo com o original (a edição é bilíngüe). Se no século 20 Paulo Quintela salvou a tradução de D’Ornellas — a primeira feita em Portugal —, no século 21 é a tradução brasileira que ressurge em toda sua beleza.
Falemos também da tradução mais recente da obra, feita por João Barrento, que já no livro (enquanto objeto) deixa transparecer a grandeza de seu conteúdo (a edição é belíssima). Sua tradução é realizada de maneira que o jogo entre os tons que vão da grande solenidade até uma coloquialidade extrema, em muito pouco se vê enfraquecido na tradução que, segundo ele, “foi-se então fazendo a partir de uma convicção: a de que a natureza dos originais dita o caminho da tradução”. João Barrento não se deixou cair na tentação (da qual padece a tradução de David Luke para o inglês) de deixar a tradução se vincular a certa fluência que acaba por matar a classicidade da obra. Os estudos e o glossário tornam ainda mais clara uma obra que tem no seu cerne uma grande gama de dificuldades quase que inacessíveis ao leitor médio do nosso século.
Nós, lusófonos, podemos nos considerar privilegiados. Pois se em muitas línguas o Fausto fora traduzido de maneiras as mais peculiares possíveis (enumeram-se dezenas para o inglês), na nossa, podemos dizer, que, embora muito diferentes quanto ao intento, há três grandes traduções da obra de Goethe. O cuidado dessas três traduções (que deixam transparecer sua origem histórico-geográfica) deve ser sempre ressaltado e lembrado por quem quer que vá traduzir uma obra de uma língua tão distante. A beleza dos seus diversos resultados deve ser sempre lembrada não apenas por tradutores, mas por todos aqueles que amam e fazem viver a língua portuguesa.