Quando é que se morre? Quando se pára de respirar e o corpo parece abandonado de uma essência que antes o definia? Ou morremos apenas quando desaparecemos na memória dos outros?
O primeiro romance de Vera de Sá — Réquiem — opta por esse demorado desaparecimento. Maria, morta, precisa ser ritualmente desfeita nas lembranças de seu amante, pois, com ela ainda viva dentro dele, ele não será capaz de pranteá-la.
Dividido em duas partes, o romance narra, em primeira, a impossibilidade de apreender uma mulher que nunca se deixou aprisionar enquanto viva, e que, como fantasma, continua exercendo o mesmo fascínio que antes. O narrador começa por constatar que a morte de Maria, sua amante por mais de quinze anos, não lhe provocava dor. Maria morta era uma estranha, que se deixava manipular sem reagir, tão diferente da inapreensível mulher que o obcecara, que o narrador agora pode se dar ao luxo de exercer pequenas vinganças antes impensáveis. O desaparecimento de Maria transforma-o em sujeito de sua própria vida, e da sobrevida de Maria. Confere-lhe um poder que ele, despreparado, não consegue exercer. Daí o desenrolar da história deste Réquiem, cuja função seria dissolver o narrador na própria obra, mas que, ao invés disso, vai levando-o a situações que o angustiam por lhe oferecerem sempre o papel atemorizante de sujeito.
Combinando um anel grande demais, que Maria fazia questão de usar, um misterioso personagem incensado por um livro nunca escrito, ou, pelo menos, nunca publicado, e uma divindade misteriosa que une todos os personagens da obra — Nehebkau —, a trama aparentemente simples do homem que não sofre com a perda da mulher amada/odiada adquire mais fios e muito mais caminhos a serem seguidos pelo leitor. Com a ajuda das definições da mitologia egípcia, descobrimos que no Egito antigo acreditava-se que a alma humana tinha cinco aspectos: Ren, que equivale ao nome da pessoa; Sheut, sua sombra; Ib, que é o coração, sede dos sentimentos; Ba, aquilo que dá individualidade a cada um, e, finalmente, Ka, a força vital, a diferença entre uma pessoa viva e uma morta. Unindo esses dois últimos aspectos, há uma entidade geralmente benigna, Nehebkau. Por ser filho da deusa Escorpião, essa divindade adquire, no entanto, um lado sinistro e ameaçador. E, como a palavra Ka também significa falo, o deus assume a forma de uma serpente de duas cabeças ou de uma serpente com um falo ereto, e adquire um valor erótico que não deve ser esquecido. Maria usa esse anel de serpente todo o tempo e, morta, essa é a herança que deixa ao narrador. Sem que este saiba, ele passa a carregar Nehebkau consigo, só que para nenhum benefício próprio, já que o narrador é apresentado como um homem sem alma. Ele não possui um nome. Não é capaz do sentimento da dor da perda, perdeu sua sombra, pois esta pode ser uma interpretação do repulsivo Derive. Além disso, ele tem sua individualidade ameaçada pela presença do manuscrito da obra de um outro. Deprimido, não lhe sobra sequer a força vital, pois não existe diferença entre esse ser que se nega a ser e um morto.
Sendo assim, há a necessidade de passar adiante esse símbolo do deus — o anel é entregue ao ex-marido de Maria, um homem doente mas que se recusa a morrer e se vale de aparelhos e de recursos artificiais para manter-se do outro lado da fronteira que o narrador, sua amante e sua sombra já atravessaram literal e metaforicamente. (“O homem que apareceu era um doente […] O estado físico já era tão parecido com material deteriorado que ficava impossível identificá-lo…”) Mas é ele que conhece Nehebkau, e, por isso, é ele quem vai abrir o caminho para uma nova trama.
Outro morto
Passa-se, então, à segunda parte do romance, à segunda “cabeça” da narrativa. Se, na primeira parte, Maria tem a função de protagonista, na segunda ela passa a dividir a cena com Derive. Talmineide Derivera Oliveira, ou, segundo sua escolha, Talma Derive, é apresentado pelo narrador como um ser abjeto: “…considerava Derive uma das pessoas mais desprezíveis que conhecera na vida”. Pessoa misteriosa e com uma aura muito maior que suas realizações, desprezado e invejado pelo narrador, ele também está morto. Morrera antes de Maria, mas, assim como acontece com ela, sua morte não significou seu desaparecimento. Derive se faz representar por um manuscrito, entregue ao seu rival por sua mãe, num simbólico sacrifício, um segundo parto.
Ao entregar seu manuscrito ao narrador, Derive passa a este último uma tarefa — ler e se apropriar do manuscrito. Se, no mundo moderno, a notícia da obra já transforma seu suposto autor em celebridade e guru, o que fazer quando essa identidade desaparece e sobra apenas a obra, sem publicidade nem publicação? Depreende-se que, na visão da autora, o ideal seria retornar a um momento em que a autoria não importasse, dando o primeiro plano à obra em si. Ao falar do Réquiem de Mozart, que o narrador recusa associar à Maria morta, há toda uma série de reflexões, que culmina com o desejo de perder-se no “todo” estético: “Experimentava um conforto ao creditar a invenção dessa música ao gênio de outro que não Mozart […] alguém que intencionalmente se fizera ignorar pela história oficial […] porque sabia que não havia autoria legítima na arte […] O compositor não existia. […] Os ouvintes não existiam. Existia algo maior que os incluía e os anulava, diluindo-os num todo”. (grifo da autora)
Mas a autora desvia desse caminho para refletir sobre a compreensão da obra de arte, e a solidão de quem, como o narrador, não consegue decifrar os signos com sua sabedoria, pois o saber, ele nos confidencia, também envelhece, também se torna obsoleto como uma velha enciclopédia ultrapassada. O narrador se conforma com sua solidão:
Ele estava sozinho. Derive estava morto, Maria estava morta, não havia com quem compartilhar nada. Pensou que havia uma beleza primordial em Nehebkau, aquela monstruosidade que nunca estava só. Era uma condição superior, e sentiu quase carinho por Nehebkau, vontade de ser incluído entre os que recebiam seus cuidados.
Já vimos, porém, que esse narrador não possui uma alma, tal como eram entendidas pelos antigos egípcios. Relendo o texto de Derive, livrando-se de seus preconceitos e iluminado por saberes “inúteis” retirados de uma velha e infantil enciclopédia, o narrador finalmente se julga capaz de decodificar os textos manuscritos. Ele percebe que “todos os personagens de Derive eram recriações de mortos”, numa inquietante semelhança com o próprio texto que o cria. Em seu esforço interpretativo ele percebe que “a aparição de Nehebkau criava uma interrupção naquela seqüência e agrupava os mortos num espaço sem tempo, onde não era possível nada acontecer além do prolongamento daquele estado agônico…”. E é nesse instante que ele se imagina confundido com Nehebkau, responsável pelos mortos Maria, Derive e talvez até mesmo o marido de Maria. Julga-se, então, o verdadeiro escolhido de Maria, escolhido para cuidar dela após sua morte, responsável por alimentá-la, manter, de alguma forma, sua integridade após a morte física.
De posse desta chave, o narrador abandona seu mundo dos mortos e se prepara a assumir o papel de sujeito. Finalmente livre de sua ignorância e de seu esquecimento, ele pode compreender Maria, não a que ele insistia em criar a partir de suas próprias obsessões, mas uma Maria que um dia “tinha escrito que o amava”. E é para o ser amado por essa nova Maria que a dor chega, enfim. E o narrador, após depurar-se, pode, finalmente, organizar seu caos, escrever sobre uma folha em branco, limpa como ele mesmo.
Vera de Sá elabora seu romance a partir de uma questão de estética que, nos dias de hoje, pode parecer ter caído em desuso, mas que, ao contrário, é mais que pertinente: a questão da autoria. Longe de discutir os preceitos éticos e falar de direitos autorais e pirataria, a autora dá uma guinada e provoca nos leitores uma reflexão sobre quem é o verdadeiro autor da obra de arte. E, insistente, ainda mergulha na teorização sobre a possibilidade de a vida ser matéria artística.
O romance não responde às questões que sua narrativa suscita, mas, honestamente, revela as perplexidades modernas que se deparam com simbologia demais para um mundo sem significado e sem heróis. E, depois, arrependido por ter se situado numa perspectiva idealizante e exigente, fruto talvez da depressão, procura, na escrita e na leitura apropriadas, sua remissão.