Fascinante arquitetura

A obra de Joseph Roth apresenta os contrastes do início do século 20, imerso em espiritualidade, ironia e desencanto
Ilustração: Joseph Roth por Osvalter
01/04/2014

A obra narrativa de Joseph Roth, tendo sido gestada e produzida nas primeiras décadas do século 20, termina por incorporar alguns elementos muito representativos desse período. Em primeiro lugar, o mundo de Roth é tanto material quanto imaterial, feito de espiritualidade, ironia e desencanto, com uma percepção aguda tanto daquilo que é inapreensível (como a fé, a crença, a esperança, a angústia) quanto daquilo que é palpável, por vezes terrivelmente palpável (a miséria, o trabalho cotidiano). Em grande parte por conta de sua ascendência judaica, Roth constrói um universo poroso, aberto à influência do sagrado e do metafísico — algo que se observa em inúmeros escritores contemporâneos a Roth, como Kafka, Walter Benjamin, Leo Perutz, Mikhail Bulgákov ou Gustav Meyrink.

Mas na obra de Roth, essa porosidade do mundo material também pode ser alcançada pelo próprio sujeito, sobretudo através da bebida. Mais do que um alcoólatra, Roth abraçou a bebida como parte constituinte de sua personalidade, sua vida cotidiana e, consequentemente, de seu exercício criativo. Instalando-se numa tradição que vai de Baudelaire e Rimbaud até, mais tarde, Bohumil Hrabal, Joseph Roth faz do estado intermediário entre a sobriedade e a ebriedade um espaço de experimentação artística — imagens ambíguas, visões excêntricas, resoluções delirantes. Talvez a breve novela A lenda do santo beberrão seja o livro mais representativo de Roth nesse sentido, publicado agora pela Estação Liberdade com tradução de Mário Frungillo. Feito ele próprio num dramático espaço intermediário — Roth estava entre a vida e a morte, nos primeiros meses de 1939, em Paris —, A lenda do santo beberrão une espiritualidade e materialidade, epifania e mundanidade, dor e redenção.

Numa noite de primavera do ano de 1934, um cavalheiro de idade madura descia os degraus de pedra que levam de uma das pontes do Sena para as suas margens. Ali, como quase todo mundo sabe, mas merece ser relembrado nessa ocasião, costumam dormir, ou melhor dizendo, acampar os sem-teto de Paris.

Vale notar que A lenda do santo beberrão foi traduzido e publicado no Brasil em 2000, numa edição de circulação bastante limitada pela editora Ugrino, com tradução de Marcus Tulius Franco Morais. Como curiosidade, e também como ilustração da riqueza de possibilidades envolvidas no ato de traduzir, transcrevo aqui a solução da edição da Ugrino para o trecho citado acima:

Numa noite de primavera de 1934, um senhor idoso desceu os degraus de pedra de uma das pontes que dá acesso às margens do Sena. Como quase todo mundo sabe, embora não seja de todo inútil lembrar aqui, é lá que os mendigos de Paris dormem, ou melhor, passam as noites.

De qualquer forma, é motivo de alegria saber que temos acesso não apenas a uma, mas a duas traduções de um dos melhores livros de Joseph Roth — autor que sem dúvida merece mais traduções de suas obras por aqui.

(Na coletânea de ensaios Mecanismos internos, J. M. Coetzee incorporou um texto seu que comenta uma recente edição em inglês dos contos de Joseph Roth. Coetzee dedica a parte final de seu ensaio a comentar a tradução feita ao inglês da prosa de Roth, realizada há muitos anos e com bastante constância pelo escritor Michael Hofmann (filho do grande escritor alemão Gert Hofmann, da geração de W. G. Sebald, autor do soberbo O homem do animatógrafo). Pois bem, Coetzee é bastante detalhista em seus comentários sobre as soluções encontradas por Hofmann, que se refletem, necessariamente, na ideia que se forma de Joseph Roth como escritor em língua inglesa. Parte dessa percepção pode muito bem ser transposta para o caso brasileiro, no qual temos a oportunidade rara de cotejar as duas traduções de A lenda do santo beberrão.)

A novela de Roth começa quando um homem rico dá de frente com esse bêbado que caminha em sua direção. O bêbado, que se chama Andreas, recebe desse homem uma considerável soma em dinheiro, dando-lhe sua promessa de que um dia devolverá a gentileza sob a forma de uma oferta a uma santa. Muito rapidamente Andreas gasta o dinheiro com bebida, e nesse percurso vai colecionando encontros absurdos com figuras as mais pitorescas, sem conseguir jamais cumprir a promessa feita. A ação em geral tem lugar no Tari-Bari, um bar para emigrados do Leste em Paris, que serve de cenário para um romance anterior de Roth, Confissões de um assassino, de 1936.

(Confissões de um assassino é um dos grandes romances de Joseph Roth, pertencente a sua fase final, que infelizmente ainda não conta com edição brasileira. O romance exemplifica bem a oscilação característica de Roth entre materialidade e metafísica, entre o mundo real e o mundo místico ou espiritual. A narração ocupa o espaço de apenas uma noite, em que um homem escuta o relato de um estrangeiro que chega ao Tari-Bari e conta sua história — a história de como enriqueceu e viveu maravilhas, perigos e fatos inacreditáveis com a ajuda de um homem misterioso que, pouco a pouco, vai se revelando uma sorte de encarnação do demônio. O exercício de Roth em Confissões de um assassino envolve uma reescrita irônica e em registro velado do Fausto de Goethe, um dos livros de cabeceira de Roth.)

“No Tari-Bari havia muita gente”, escreve o narrador de A lenda do santo beberrão, “pois muita gente que não tinha um teto dormia lá, dias a fio, noites a fio, passando o dia diante do balcão e a noite sobre os bancos. Andreas se levantou no domingo bem cedo, não tanto por medo de perder a missa como por medo do proprietário, que lhe poderia exigir o pagamento pela bebida, pela comida e pela hospedagem de todos aqueles dias”.

Esse é o tom que acompanha boa parte dos breves capítulos que formam A lenda do santo beberrão: um misto de ironia, humilhação, melodrama e malandragem, pois Andreas está continuamente envolvido com sentimentos contraditórios — deve ele gastar o dinheiro para cumprir sua promessa ou deve ele gastar seu dinheiro com bebida? No caso de escolher a última alternativa, deve ele investir em bebida somente para si próprio (tendo que, dessa forma, se esconder sob as pontes do Sena) ou aproveitar a ocasião para congregar-se com seus companheiros e companheiras de copo (estas últimas também de cama)? Em paralelo a essas dúvidas bastante diretas, que dizem respeito às resoluções práticas da vida de Andreas — uma vida que, de resto, é reduzida a seus aspectos básicos, como onde dormir, o que fazer para comer e beber —, Roth faz questão de inserir o aspecto mágico recorrente de sua obra: a constante preocupação com a dívida que Andreas tem com a santa, e, no nível propriamente temático e formal da novela, a recorrente aparição de algum benfeitor que renova o dinheiro nos bolsos de Andreas. Essa mistura do cotidiano rasteiro de Andreas com a aparente intervenção divina em sua vida é que torna A lenda do santo beberrão uma novela tão instigante e potente, mesmo tendo sido escrita há quase oitenta anos.

Foco ampliado
Com Hotel Savoy, traduzido por Silvia Bittencourt na edição da Estação Liberdade, o foco de Joseph Roth se amplia. Publicado originalmente em 1924, trata-se de um dos primeiros trabalhos de ficção de Roth, que faz uso desse cenário agregador que é o hotel para trabalhar a construção de personagens de forma ágil e concisa — nesse ponto, a comparação feita acima com Bohumil Hrabal pode ser aprofundada, se lembrarmos que o livro mais conhecido deste último, Eu servi o rei da Inglaterra, parte de uma premissa muito semelhante àquele que rege Hotel Savoy.

(Tanto o romance de Hrabal quanto o de Joseph Roth têm como cenário um hotel, e a partir desse cenário articulam personagem os mais diversos [nacionalidades, costumes e culturas variadas em permanente contato e sobreposição]. No entanto, dentro desse universo restrito, tanto Roth quanto Hrabal trabalham a partir de uma particularização ainda mais radical, focando em porções consideráveis de seus romances no trabalho que acontece nas cozinhas dos hotéis. É possível, diante disso, traçar um paralelo com o trabalho de George Orwell em seu autobiográfico Na pior em Paris e Londres, que lida com suas experiências como trabalhador não-especializado em cozinhas de hotéis. Talvez seja interessante manter isso em mente ao abordar o universo ficcional de Roth, que tanto em Hotel Savoy quanto em A lenda do santo beberrão, escolhe dar voz a essas figuras obscuras da sociedade que podem ser encontradas, por exemplo, nas cozinhas dos hotéis.)

Como Hotel Savoy é anterior a A lenda do santo beberrão, é possível dizer que na novela Roth particulariza um personagem que até certo ponto já estava no romance de 1924 — é possível identificar traços de Andreas em vários personagens de Hotel Savoy, traços que, de resto, pertenciam ao próprio Roth e seus amigos próximos (a errância, a despreocupação com o futuro, o gosto pela bebida, a religiosidade altamente adaptável). Mais do que a recorrência de traços, é possível perceber na obra de Roth como um todo uma predileção por tipos sociais de pouca projeção, que circulam pelo submundo, desde artistas de rua, músicos, poetas incompreendidos, até prostitutas, trambiqueiros, falsários, pequenos comerciantes e contrabandistas. A consciência política de Roth foi ganhando sutileza com o passar dos anos, seja por conta de sua atividade jornalística (as viagens que permitiam a observação de diferentes contextos políticos, por exemplo), seja por conta da ascensão de Hitler a partir da década de 1930, mas é possível perceber desde o início de sua carreira (desde Hotel Savoy, portanto) um insistente direcionamento de seu olhar na direção dessas figuras que lutam para sobreviver no lado obscuro da Europa pós-Primeira Guerra Mundial.

Hotel Savoy é articulado por um narrador que participa da história, Gabriel Dan, um judeu russo egresso de um campo de concentração na Sibéria (o retorno do soldado será tema para Roth também em Fuga sem fim, novela breve editada no Brasil pela Difel em 1985). O Savoy é o local onde o personagem se instala em sua jornada de libertação ao fim da Primeira Guerra Mundial.

Pela primeira vez depois de cinco anos encontro-me nos portões da Europa. Com seus sete andares, seu brasão dourado e um porteiro uniformizado, o Hotel Savoy parece-me mais europeu do que todas as outras hospedarias do Leste. Ele promete água, sabão, lavabo inglês, elevador, criadas com toucas brancas, mictórios com agradáveis sinais luminosos, bem como surpresas deliciosas em caixinhas revestidas de madeira; lâmpadas elétricas desabrochando de abajures rosa e verdes, como cálices; campainhas estridentes que obedecem a um toque do polegar, e camas acolchoadas com penas, volumosas e prazerosamente prontas para receber o corpo.

Mas o personagem mais fascinante de Hotel Savoy não é Gabriel Dan — ele é somente o observador que tenta dar conta das transformações ao seu redor —, mas seu amigo polonês, Zwonimir. Ele é o típico fanfarrão que faz tudo em abundância, falar, comer, beber (“Zwonimir é o maior e o mais forte homem do Hotel Savoy”, escreve Dan, e mais adiante: “Zwonimir é um revolucionário desde o nascimento”). Além disso, ele é o responsável por arregimentar as cada vez mais numerosas levas de refugiados da guerra que chegam dos lados da Rússia. “Combina com a chuva o fato de, nesses dias, a torrente de regressados se deslocar com vigorosa violência”, escreve Dan. “Eles andam no meio da chuva fina e inclinada, e a Rússia, a grande Rússia, os despeja. Eles não têm fim.” Pouco mais adiante, Zwonimir se manifesta: “Chegou a revolução”, diz ele. “Sentimos a revolução”, escreve o narrador. “Ela chega do Leste — e nenhum jornal e nenhum militar pode segurá-la.” Zwonimir aproveita a ocasião para tentar alcançar uma posição de destaque: “O Hotel Savoy — afirma Zwonimir para os regressados — é um palácio rico e uma prisão. Embaixo, em quartos belos e amplos, moram os ricos, os amigos de Neurer, o industrial, e em cima, os pobres cães, que não conseguem pagar seus quartos e penhoram suas malas para Ignatz. Ninguém conhece o proprietário do hotel, que é um grego; nem nós, que somos rapazes ajuizados”.

Mas não é somente sobre os regressados que Zwonimir mostra sua influência, ou que Gabriel Dan gasta seu talento de observador. Tudo isso é ensaiado e posto em prática muito antes, no cotidiano do Hotel Savoy. A narrativa de Roth vai se construindo em torno dessa camaradagem que é, ao mesmo tempo, composta de desconfiança e desencanto. Todos aqueles que vivem no Hotel Savoy estão ali de forma improvisada, sabendo que a estrutura os recebe mas que ela não é infinita ou ilimitada, e que é preciso tornar-se, na medida do possível, indispensável. Aqueles que lutaram na guerra juntos se reencontram no ambiente do hotel, esperando pela oportunidade de trabalhos os mais diversos, todos mal remunerados e frequentemente estafantes. A própria vida cotidiana no presente é cindida, não sabe se relembra o passado ou se o esquece para poder seguir adiante. Mas a guerra que alguns esquecem retorna com o vento, com os odores e os passos dos regressados, que não param de chegar ao Savoy vindos do Leste.

Temos a impressão, já quase ao final da história, que Hotel Savoy apresenta um momento fugidio e irrepetível em que várias forças contraditórias se encontraram e formaram, brevemente, uma imagem coerente — para logo cair novamente no caos e na incompreensão. Se num primeiro momento a volta para casa (do narrador e de todos os “regressados” que aos poucos surgem) tem aquele tom costumeiro de nostalgia e vigor, em breve percebemos que essa percepção vai se esvaindo, se contaminando com uma inquietude que mesmo Dan não compreende totalmente. A figura de Zwonimir, que parece compreender essa inquietude e mesmo se regozijar nela, serve de balanço para o romance e também para encaminhá-lo para sua resolução, que é da ordem do confronto e de seu esvaziamento. De qualquer ângulo que se olhe, Hotel Savoy é um romance rico, de múltiplas ressonâncias, peça exemplar dessa arquitetura fascinante que é a obra de Joseph Roth.

A lenda do santo beberrão
Joseph Roth
Trad.: Mário Frungillo
Estação Liberdade
74 págs.
Hotel Savoy
Joseph Roth
Trad.: Silvia Bittencourt
Estação Liberdade
183 págs.
Joseph Roth
Moses Joseph Roth nasceu em 1894 na cidade de Brody, região da Galícia, que então integrava o Império Austro-Húngaro e hoje pertence à Ucrânia. Jornalista de sucesso, tendo sido correspondente de jornais alemães em vários países da Europa, dedicou-se à literatura a partir do final da década de 1920. De sua vasta produção destacam-se os romances A marcha de Radetzky e Jó e a novela A lenda do santo beberrão. Em 1933, emigrou para a França, onde morreria no exílio em 1939.
Kelvin Falcão Klein

É crítico literário, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.

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