Faroeste shakespeariano

Em seu romance de estreia, "Dan" cria uma saga marginal repleta de violência, traição, vingança, amor proibido e morte
Dan, autor de “Vale o que tá escrito” Foto: Tiago de Aragão
01/08/2024

Dan faz uma literatura fora de moda. Vale o que tá escrito, seu romance de estreia, não se enquadra nos temas badalados pela atual produção nacional ou se utiliza da permissividade da ficção para transmitir mensagens de intenção social. É uma narrativa anacrônica, que bebe de influências de um passado patrulhado, da lavra impugnada de Rubem Fonseca e João Antônio, escritores capazes de apreender a realidade dos marginalizados e transformar essa experiência amarga numa matéria literária definida por um posicionamento estético, pela exploração de um universo caracterizado pela miséria urbana, pelos maus costumes e pelas múltiplas formas de violência. Enredos a um passo da reportagem, que parecem fazer o caminho inverso e se inspirar nas pautas dos extintos Notícias Populares e Aqui Agora. Alheios a uma tara de reverberar além de suas páginas, aprisionando o leitor em circunstâncias que certamente ele não gostaria de estar.

Trata-se de uma história imperfeita, com personagens imperfeitos, apoiada numa oralidade de rua que se faz presente no estilo narrativo, bem como na falta de confiabilidade da narração. Quem conta reproduz o que se lembra ou repercute o que ouviu, talvez não por inteiro, talvez distorcendo a integridade do fato. Esta é a energia que magnetiza os rumos do texto, operando por meio de um relato em que não fica claro se a aparência da verdade representa o acontecido, ou se a versão do acontecido é uma representação do imaginário geral. Todos fazem parte de uma história que passa a ganhar corpo à medida que se vive seus becos escuros, dentro da dificuldade de se deslindar o incerto do certo. O autor em si, um publicitário que esconde o rosto e assina com uma abreviatura, contribui para esse clima de imprecisão, com o mesmo empenho que a premissa se catalisa por conta de um golpe de espanto, a visão de um homem que não deveria existir, um morto-vivo. Não é um livro de suspense, mas tem seus mistérios. Como também um humor casual, drama familiar e muitas referências pop. Uma urdidura fragmentada que sabe articular seu conteúdo volúvel para atrair e surpreender.

A trama que se mostra, a princípio, a principal é protagonizada por Danylton, um barista incompetente, dono de uma cafeteria que vai mal das pernas tal qual seu casamento. Num dia usual de marasmo, ele vê cruzar sua porta Lilico, um sujeito dado como morto há anos, cuja vida de crimes afetou não só sua infância e adolescência, mas a formação de toda uma comunidade. Decide, assim, ressuscitar um desejo de escrever sobre este passado, abandonando o negócio e sendo abandonado pela esposa. Entra em contato com Sara, uma amiga jornalista que fez uma reportagem investigativa sobre os fatos, e junta documentos de pesquisa, anotações pessoais, boatos e lembranças de modo a compor uma espécie de biografia de um homem violento, que, direta ou indiretamente, confunde-se com a própria biografia do lugar.

Pedagogia do murro
Este movimento dá partida a uma segunda linha narrativa, que recua ao final dos anos 1980, cobrindo a história de Lilico. Um menino marcado por fraturas familiares, surras e expulsões de colégios, que era visto pelas outras crianças como alguém “com um parafuso a menos”. Formou-se pela pedagogia do murro, resolvendo seus problemas no punho ou com o que de ameaçador tinha pela frente. Na adolescência era pavio curto, crismado em delinquência, mas se camuflava ajudando na banca de revistas do pai. Ali percebe que a lei que impera é ditada por um clã de contraventores, uma milícia com ligações escusas com o comando e a segurança oficial, e, embora esteja prestes a cumprir o serviço militar obrigatório, um convite insidioso muda para sempre seu destino.

Vive-se e vivencia-se uma Brasília periférica, o duro Núcleo Bandeirante, bem distante da “cidade de homens felizes, homens que sentem a vida em toda a sua plenitude, em toda sua fragilidade; homens que compreendem o valor das coisas puras”, como diz aquela sinfonia de Tom e Vinicius. O encontro de Lilico com o autoexplicativo Boamorte reparte a trama num terceiro segmento no qual algo como uma consciência geográfica assunta a formação da região, regressando aos anos 1950, período em que o local era ponto de chegada dos trabalhadores da construção da nova capital. Esta efervescência de migrantes vai se configurando em disputas do território, embates, traições e mortes, até se personificar em homens que perpetram o lema do olho por olho, dente por dente, que instituem uma hegemonia por meio da violência e da ilicitude, culminando numa dinastia do jogo do bicho, milicianos e pistoleiros a mando da expressão do título, cujo significado também ficou notório na série do Globoplay.

Estas três partes, mais a ocorrência de fragmentos incidentais, alternam-se numa contextura em que acontecimentos do passado se cruzam e/ou elucidam situações do presente, mas também deixam pontas soltas e quebras de percepção, levando a se suspeitar da credibilidade de quem fala. A verdade, furtivamente deslocada do foco de tensão, gera um procedimento de metalinguagem em que a realidade se trai pela subversão do propósito da narrativa. Afinal, no corpo a corpo entre o fato e a imaginação, uma biografia se conforma no que sobra do atrito. No livro que transcorre dentro do livro, a saga de Lilico é um faroeste shakespeariano, com vilões e mocinhos, amores proibidos e rejeições, vingança e fuga. Como pode ser mais, como pode ser menos. Como pode não ser.

Na literatura de Dan cabe de tudo: dualidade de vozes, personagens falsos, variações de estilo e uma abordagem que tem um conduto histórico, como a estratégia distrativa dos livros policialescos da coleção Vaga-lume. Tudo levado com perspicácia, numa prosa dinâmica e desenfeitada, que não se preocupa em ser politicamente correta ou produzir no leitor qualquer eco além do que conta sua história. Isso não quer dizer que está livre de ajustes. A prolixidade do narrador principal poderia ter sido moderada, tal qual o detalhismo nas descrições. Algumas referências de época não se encaixam no texto, sendo apenas exposições gratuitas de objetos, marcas, programas de tevê etc. O mesmo ocorre na decisão de usar a narração em primeira pessoa para relatar episódios de outros personagens, nos quais quem narra não está presente. Mesmo que baseado num diário, foge à lógica, para um locutor indireto, sem ter uma apreensão total da ação em volta, da troca de diálogos, das incursões no campo das sensações e dos sentidos.

Contudo, são detalhes que não comprometem a boa estreia de um autor com pleno domínio do universo que criou e de seus veios comunicantes, que não demonstra pretensão de dourar a literatura, que, embora explore temas com uma forte carga social, não se imputa o compromisso de levantar uma bandeira, fazer patrulha, defender uma causa. Escrever ficção não precisa ser complexo. Parafraseando uma passagem do romance, “se tem couro de jacaré, rabo de jacaré, olho de jacaré, boca de jacaré, como não pode ser jacaré?”. Livro é para se ler.

Vale o que tá escrito
Dan
DBA
224 págs.
Dan
É professor de escrita criativa e de roteiro de cinema.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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