Daqueles diversos projetos que nunca de fato fazemos o menor esforço para tirar do papel, ou ainda, do mundo abstrato das conjecturas inúteis e de conversas de mesa de bar, de alguns meses para cá me veio a ideia de criar um pequeno teste de internet para os interessados na produção de literatura, ainda cheios de esperança e ambição nos olhos: qual autor da literatura universal você é?
Julgando-se muito mais inteligentes e interessantes dos que fazem testes assemelhados para descobrir qual dos personagens da Disney, da Pixar ou da série de Netflix mais discutida do momento, os jovens gênios responderiam cada pergunta buscando a semelhança de suas poéticas pessoais (únicas e interessantíssimas) com a de grandes nomes consagrados, ocasionalmente manipulando as próprias respostas para se aproximar do resultado mais proveitoso, uma vez que lá na terceira pergunta já ficariam claras quais seriam as possibilidades. Franz Kafka, Herman Melville, Edgar Allan Poe, Philip K. Dick, Rimbaud, Emily Dickinson, referências bem nítidas a insetos monstruosos, baleias monumentais, corvos insistentes, ovelhas elétricas, ou mesmo tiros em amigos coloridos, vidas em total isolamento, etc., nada muito disfarçado, com outras duas ou três opções de autor a mais que sem dúvida me ocorreriam caso eu tivesse o ímpeto de concretizar o projeto.
O algoritmo para avaliar as respostas seria a parte mais fácil, e a principal graça do negócio, uma vez que quaisquer opções que se escolha a resposta seria a mesma: você não é ninguém. Você não é Kafka, Melville, Poe, Dickinson, ninguém. Ninguém tem interesse em ler o que você tem a dizer ou inventar, você vai ser tão obscuro quanto seu vizinho antigo que colecionava moluscos, ou que fazia ferrorama no porão, as arvorezinhas em cuidadosa escala em referência aos trens.
Poucas apostas seriam mais acertadas do que a que diz que a média resultante dos esforços literários do autor comum é zero. Para cada autor publicado, milhares de frustrados que nunca veem seus esforços validados no nível mais mínimo. Para cada autor premiado, milhares de publicados e imediatamente esquecidos. Para cada autor lembrado, vários premiados que são esquecidos. O jovem que encosta a metafórica caneta no metafórico papel sempre se enxerga lado a lado com seus heróis, rejeitando a pequeneza dos escritores que são lembrados como de interesse secundário; o aspirante a escritor não quer ser José de Alencar, ele quer ser Machado. Mais fácil, claro, é não chegar a ser um Manuel Antonio de Almeida, sendo apenas o insuportável que importunava o pobre Manuel para que seus manuscritos fossem lidos por alguém dentro de uma editora. Vencida essa etapa imensa, ainda assim, a leitura de qualquer compêndio mais extenso sobre a literatura brasileira desencava centenas de nomes completamente obscuros exceto para os estudiosos fetichistas do esquecimento.
A graça semi-escondida do teste, que talvez alguns dos leitores já tenham percebido, é a de que as opções listadas (e as que seriam complementadas depois também seguiriam essa regra) seriam todas de autores que obtiveram quase todo seu reconhecimento após a morte. O autor lá preenchendo o teste pode até dizer para si mesmo que o que importa é a posteridade, essa festa eterna para a qual não somos convidados, que o que tem valor é o texto, sua contribuição para a humanidade não há de ser mensurada de forma material etc., mas a própria participação no teste já indica uma fome por qualquer feedback, o menor que seja; a resposta que receberão será mais ou menos a mesma que os esquecidos-em-vida acima elencados receberam enquanto eram vivos, e não sei se a maioria das pessoas que fizesse esse teste ficaria feliz em estar tão ao lado de seus ídolos. A verdade é mesmo que é muito provável que dê tudo errado, e a pessoa passe a vida inteira roendo inutilmente as unhas e a autoestima.
Limpidez e clareza
John Williams teve uma experiência de vida artística semelhante a do rol acima construído. Levou uma vida de professor universitário sem qualquer repercussão que lhe tenha sobrevivido. Publicou quatro romances, o último chegando a dividir um prêmio literário, mas mesmo em vida viu os títulos saírem do catálogo como que permanentemente. Seu terceiro romance, Stoner, é uma obra-prima por qualquer métrica razoável que possa ser escolhida, sendo leitura recomendável a qualquer ser humano alfabetizado e com a imaginação capaz de acompanhar uma narrativa maior que três parágrafos de tamanho normal. Vendeu menos de duas mil cópias durante a vida do autor, sendo redescoberto pelos idos da década passada, ganhando então traduções pelo mundo inteiro. Sua limpidez e clareza constitutivas curiosamente tornam difícil uma discussão mais aprofundada de suas qualidades: qualquer resumo de seu conteúdo ou mesmo estilo parece grotesco em sua insuficiência, restando ao leitor entusiasmado apenas repetir sua recomendação a qualquer um que o escute.
Butcher’s crossing não é tão diferente, ainda que o resumo de seu enredo seja mais expressivo. Um jovem estudante de Harvard inspirado por suas leituras de Ralph Waldo Emerson abandona a vida citadina para encontrar a natureza, ajuntando-se a uma expedição de caça a búfalos e tendo de sobreviver às condições adversas do mundo selvagem. O romance constitui uma espécie de faroeste realista, deixando de lado o imaginário heroico estereotipado consagrado pelo cinema, em lutas violentas contra indígenas ou árdua busca de estabelecimento de ordem: a grandeza almejada é a do espírito, pesadamente romantizado na concepção do protagonista, se deparando a cada etapa com um mundo que corresponde muito pouco as suas expectativas. A seriedade da narrativa não fraqueja em qualquer momento, em um estilo descritivo que seria excessivo não fosse o foco de interesse contínuo do protagonista e seu fascínio pelo mundo natural, pelas diferenças em relação ao mundo anterior.
Uma discussão mais aprofundada do romance, no entanto, fica prejudicada nesse contexto de uma resenha pela importância do final da história surpreender o leitor tanto quanto os personagens. O romance cresce em sua dimensão histórica e social de maneira surpreendente, uma vez que a narrativa antes se constituía de forma sólida e satisfatória no campo das discussões naturistas evocadas pela tradição literária americana, a intensa subjetividade supostamente alargada pelo distanciamento das demandas sociais mais intricadas da vida urbana. É como se o mundo inteiro de repente invadisse de volta, de maneira irrecuperável, deixando os personagens e o leitor atônitos. Ainda que não seja um livro da perfeição extraordinária de Stoner, é tarefa difícil apontar qualquer defeito no livro. Fique aqui a recomendação enfática: vá, leia. É um romance de perfeição fácil, como se fosse estranho que nem todo mundo conseguisse alcançar uma obra tão sólida, com naturalidade. É incompreensível sua falta de reconhecimento em vida: não é possível atribuir a qualquer nova sensibilidade desenvolvida na era da internet (ou qualquer coisa parecida) esse renascimento, muito menos a ideia de que essa geração de alguma maneira seria mais inteligente do que as anteriores.
Talvez seja uma das idealizações do trabalho artístico encontradas de maneira mais repetitiva, a do reconhecimento póstumo, o pobre escritor que labuta na obscuridade completa por uma vida inteira, o puro altruísmo artístico, importando mais a humanidade do que seu próprio ego ou bem-estar. A pergunta que poucos fazem é se esses artistas teriam continuado (ou mesmo iniciado) seus esforços se tivessem recebido o aviso de que eles não colheriam nada em vida, se teriam entregado muito de seu curto tempo de vida para terem seus túmulos transformados em atração turística para selfies de gente lida. Muitos dirão que o trabalho artístico é sua própria recompensa, mas minha aposta é que poucos desses recusariam uma proposta de produzir metade do seu opus completo em troca de algum reconhecimento. John Williams parece que conseguiu qualquer vida boa apesar de sua obscuridade, teve a esperteza de conseguir um emprego fixo.