Fantasmas no raso

Linguagem e estilo tornam romance de Rui Mourão um fardo pesadíssimo para o leitor carregar
Rui Mourão, autor de “Mergulho na região do espanto”
28/08/2016

Segundo informações da capa, com Mergulho na região do espanto, o autor, importante figura para a memória histórica e cultural brasileira, encerra a trilogia sobre a temática do ciclo do ouro em Ouro Preto, que começou com Boca de chafariz (2010) e Quando os demônios descem o morro (2008).

Isto é um problema, pois tive acesso apenas a este último romance, o que me impõe certo temor de perder a unidade desejada, ao resenhar apenas a obra em si. Entretanto, deve ela subsistir por si própria ao ser lida. Assim, leio-a como romance autônomo.

O fato de o autor estar dedicado ao Museu da Inconfidência há mais de 40 anos, ter obras teóricas e administrativas publicadas sobre a Inconfidência Mineira e o museu lhe deu e dá, além da familiaridade temática, várias possibilidades de pesquisa e de aplicar na ficção seu saber historiográfico.

Mas não é a partir disso que a leitura deste romance se firmaria. O autor, creio, ambiciona criar uma epopeia mineira da conquista da terra do ouro até a Inconfidência, à qual deseja aplicar recursos narrativos contemporâneos. Ou seja, o romance se desejaria pari passu com a história, mas também sob uma prosa estruturalmente mais complexa.

É, porém, com grande esforço que o leitor avança; por várias razões. Uma, a linguagem e estilo do autor incomodam (falo disso adiante). Outra razão é a estratégia que não se concretiza bem: faz-se a introdução de vários personagens fantasmagóricos, vindos de outras dimensões oníricas, assassinos, assassinados, intelectuais e aventureiros, com que o autor pretende uma atmosfera de realismo fantástico. Tais personagens fantasmais resolvem, em discurso próprio — embora todos no mesmo tom (o do autor…) —, oferecer depoimentos sobre sua vida e a história da época ao “tomador de notas”, que é um narrador em primeira pessoa (recurso comum do narrar “mineiro” na literatura).

No decorrer de mais de 300 páginas, com essas vozes (inconfidentes, médico, psiquiatra, padres, o cônego Luiz Vieira), emergem até Cláudio Manuel da Costa e o próprio Tiradentes. O problema está na extensão das falas, que se alongam quase sem interrupções e têm um pernicioso caráter professoral, didatizante — provável demanda do vasto repertório histórico-cultural do autor. Em resumo: são “falas” entediantes.

O narrador/ouvinte, ora passivo, ora surpreso, ora amedrontado, intervém quase nada na conversa com seus fantasmas. Ora, ele será o narrador de uma “vindoura” obra, percebemos logo; assim, sua passividade (por temor dos fantasmas, ou admiração aos personagens) soa falsa.

Parece haver a intenção do autor de estilizar cada fala a um modo peculiar, o que não se realiza. Para exemplo, o primeiro depoente, que largou mulher e filhos pelo ouro, diz, em tom meio rosiano:

Vou contar vivências miúdas que sempre repito para meu próprio sustento. Para não me esquecer de quando fui gente, como os que andam poro aí. Para alheios, interesse não haverá. Mas se o senhor insiste em ouvir, carente não vai ficar.

Quero dizer com isso, que o leitor se vê diante de várias narrativas dentro da narrativa principal (que por sua vez é insípida), muitas professorais e todas com estilo similar, a despeito do esforço do autor.

Realismo fantástico e medo
A par desse “material” que está colhendo, sobrevém uma dúvida angustiante (ou, digamos, intelectual) do narrador/protagonista: Por que o ouro, frente a tantos outros metais e pedras preciosas, “jamais teve competidor no que diz respeito a valor monetário e prestígio social (…)”? Estranha dúvida, pergunta-se o leitor. Ela justifica tão extensa pesquisa com fantasmas? É disso que falarão os fantasmas para ajudar o narrador? Ao fim e ao cabo, teremos uma “teoria” sobre ouro e prestígio social? Correndo o risco de ser leitora ingênua, digo que nada há mais óbvio do que associarmos ouro a prestígio social na época da mineração…

O autor deseja um ambiente narrativo nebuloso, enigmático, mas não lida bem com a relação entre mundo real e fantástico. Na literatura de realismo mágico, a partir de uma situação ordinária da vida, o fato extraordinário irrompe e se acomoda como verdade. Mas, ao contrário, as figuras fantasmais deste romance, que deveriam ser aceitas pelo narrador, não como incomuns, mas como substituição sui generis do mundo real, não o são. O narrador, ao ser visitado, espanta-se, tem medo, preserva-se. Quer dizer, movimenta-se no mundo racional.

Diferentemente do hoje combalido realismo mágico, o narrador não compreende e teme o mundo não natural — e estranhará até o fim da obra seu aspecto não racional. Desde que recebeu a visita da “primeira forma de gente, que dá a missão de ir a Ouro Preto — onde deveria chegar ‘renunciado à banalidade do olhar curioso de todo mundo’”, pergunta-se se está louco, se está em delírio, se está sonhando — o que prova que não toma como natural o mundo sobrenatural com o qual está “convivendo”.

Pulei da cama. Abri a janela. Deparei um panorama surpreendente. No meio dele, esbranquiçadas formas aladas de pessoas, muito pouco nítidas, transitavam nas mais diversas direções (…) “Que está acontecendo? Veja!” (…) Não está vendo as formas que navegam voando no meio do pé-d’água? Não houve as falas, os gritos?

A despeito de poder comunicar-se com o “outro mundo”, não passa a atuar nesse outro registro com naturalidade. Fixado no mundo natural, é a partir dele que avalia e comenta os relatos dos depoentes. Voltará sempre à lógica: não sabe aderir. Ao fim do romance, chega a elogiar seu psiquiatra, dr. Bernardo Estrada (que não sabemos se existe mesmo), o qual comentou e encarou os seres “com naturalidade”, a despeito de este dizer ao protagonista (quase um alterego): “Minha convicção continua a mesma. Sou uma racionalista. Não consigo enxergar o mundo por outra ótica”.

O historiador, o professor, o museólogo e o romancista se misturam em muitos momentos com o narrador, donde fica difícil isolar-se. Temo que, com esse emaranhado, não se conquiste de modo nenhum a cumplicidade com o leitor.

Perfil do narrador
Mas há problemas ainda maiores. Solteirão, ex-gerente de banco aposentado, com próspero escritório de contabilidade, o protagonista revela claramente a frustração por não ter abraçado a carreira literária — pois dedicou a vida a cuidar da mãe, agora morta. Arriscou alguns contos de gaveta, com os quais não sabe o que fazer. Na interlocução com um, depois com outro psiquiatra (não sabemos ao certo se são delírios), aceita a interpretação de que a mãe teria sido a causa do “impedimento para a carreira literária”. Ou seja, rejeição definiu a personalidade do pobre homem.

A volta a Ouro Preto (cidade onde a mãe está enterrada) e a relação que se estabelece entre ele e os depoimentos das “entidades”, como as chama às vezes, querem ser o fulcro da narrativa, que, como se vê investe em recurso bem comum. “Ah! —, pensa o leitor — entendi: essa é a estratégia para, com os depoimentos, o narrador vir a tecer os textos que seriam, finalmente, o livro desse contador solitário”.

Assim, temas um tanto desgastados e estruturas recorrentes constroem o romance: frustração literária de um ex-bancário; dedicação obsedante à mãe — como castradora figura feminina; narrativas internas que serão elevadas à condição de obra a ser publicada; recorrência ao fantástico para justificar, por lógica externa, a voz própria dos inconfidentes; necessidade pouco dissimulada de compartilhamento didático da época.

O historiador, o professor, o museólogo e o romancista se misturam em muitos momentos com o narrador, donde fica difícil isolar-se. Temo que, com esse emaranhado, não se conquiste de modo nenhum a cumplicidade com o leitor.

O desejo de uma estrutura sofisticada, acrescida — eu ainda não disse! — do fato de o próprio protagonista se ver transfigurado nos depoentes (sim, o narrador teria sido em outra época alguns dos seus fantasmas), escurece ainda mais a incompreensão. Talvez o romance atraia historiadores e seus pares, com seus toques de ficção, mas não há como nós absorvermos todas essas ambições.

A par dessas dificuldades, tom, prosódia e sintaxe do autor debruçam-se em estilo um tanto retorcido, artificial, que investe o uso do particípio passado, grande quantidade de adjetivos e advérbios — o que endurece muito o texto:

Quando o ônibus atravessou a ponte do Mutuca, impressionava a quase escuridão que pareceu envolver a região inteira e as negras nuvens pesadas, agitadas, navegando com certa bambeza, dependurada, empurradas pela ventania que, do chão em arrasto fazia ruidoso conjunto subir, violentamente vário, de poeira e gravetos. Afinal, em última instância os passageiros mais renitentes precipitaram-se a fechar as vidraças, bloqueando a intromissão dos desordenados golpes de ar frio.

Ao fim, o exausto leitor depara com um fecho decepcionante porque previsível para as ambições. No mundo natural do bancário aposentado, literatura e a voz da mãe se reconciliam numa ordem que ela lhe dá:

Ao acordar, a janela que ficara escancarada, enchia o quarto de raios de sol. A cidade estava a conviver com uma manhã bastante fria. Tinha comigo a lembrança de um sonho que me impressionara como se tratasse de clara cena da realidade. Minha mãe, aparecendo ao pé da cama, com o semblante tranquilo e querido de sempre, abriu a boca para me dizer: “Meu filho, publique o livro que escreveu”. (grifo meu)

Mergulho na região do espanto
Rui Mourão
Editora UFMG
341 págs.
Rui Mourão
Nasceu em Minas Gerais. Lecionou Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, em Houston e Stanford (EUA). Membro da Academia Mineira de Letras, foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais e coordenador do programa Nacional de Museus. É diretor, desde 1974, do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG).
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho