Fantasma em formol

Em "Alegres memórias" de um cadáver, Roberto Gomes tece uma bem-humorada crítica ao ambiente acadêmico
Roberto Gomes: narrativa simples e muito bem estruturada
01/06/2004

De alegres, as memórias daquele cadáver que vive no formol de uma universidade particular da fria e azul-acinzentada Curitiba não têm muito, não. Foi um escritor frustrado, um bibliotecário frustrado, um marido frustrado. Depois que seu tempo na Terra expirou, sua morte foi praticamente só frustração. Não conseguiu nem mesmo ter seu corpo entregue para o Hospital de Clínicas, como ingenuamente desejou quando soube que estava com câncer e tinha uns seis meses de vida. (Na ocasião, achou que os cientistas poderiam encontrar nele o vírus da melancolia — a grande preocupação de Brás Cubas, esse sim, um cadáver famoso —, da covardia, do medo ou da indecisão.) Quando morreu, não ascendeu e encontrou querubins tocando harpa, não trocou palavra com São Pedro, ou outro santo qualquer. Não conheceu o todo poderoso nem o cara que, dizem, fica sentado à direita dele naquela imensidão azul. Também não desceu à vermelhidão e ao calor insuportável da morada do belzebu. Foi criminosamente contrabandeado por um professor para uma faculdade repleta de padres, professores desinteressantes e alunos prontos para desafiar qualquer autoridade.

A história desse morto frustrado foi contada por Roberto Gomes em Alegres memórias de um cadáver pela primeira vez em 1979. Relançada agora (5ª edição), continua divertida e irreverente, como se conservada junto com o moço no formol da universidade.

Não há muito o que contar sobre a trama, para não atrapalhar a leitura — que é feita rapidamente, sem sobressaltos. Um bibliotecário curitibano descobre que está com câncer e resolve doar seus livros à biblioteca e seu corpo ao Hospital de Clínicas. Mas, ao invés de acordar mortinho da silva na companhia de seus entes queridos no paraíso, descobre-se consciente e preso dentro de seu corpo sem vida, mergulhado num tanque de formol da faculdade. Nada do que havia planejado para seu “defuntamento”. Teria uma morte bem enfadonha se não tivesse descoberto que ainda tinha mobilidade. Poderia andar, dar uma voltinha pelo campus. É o que faz. Veste o jaleco do professor de anatomia, põe um boné para cobrir a cabeça toda recortada pelos estudos dos acadêmicos e vai passear na biblioteca, pegar uns livros. A vantagem — ou desvantagem, depende do ponto de vista — do morto é que ele não dorme. Há muito mais tempo para pôr a leitura em dia. Os dois primeiros livros que pega são Memórias póstumas de Brás Cubas e A morte de Ivan Ilitch. As escolhas são mais que óbvias, mas os livros de Machado e Tolstoi são excelentes companhias — para vivos ou mortos.

Essa escapadela até a biblioteca, no entanto, causa um fuzuê na universidade. O morto é visto pelo vigia, que o confunde com um assaltante e atira, sem dó. Mas, como não é possível morrer duas vezes, mesmo com chumbo no corpo o desfalecido desengonçado sai lépido e faceiro, fazendo troça do assustado guardinha no meio do campo de futebol. No dia seguinte, vira manchete nos jornais locais: “Deu fantasma na universidade”.

Depois de outras “aparições” pelo campus, o corpo docente — liderado por um vice-reitor ensandecido, solitário e masoquista — declara guerra ao cadáver. Até porque os professores acham que essa história de defunto passeando pelas salas de aula, biblioteca e ginásio não tem nada de sobrenatural. Só pode ser coisa de estudante rebelde que quer desafiar as autoridades dos mestres acadêmicos e ridicularizar a instituição, tão conceituada na sociedade curitibana.

Quem resolver ler Alegres memórias de um cadáver pensando tratar-se de uma obra de realismo fantástico, pode tirar o cavalinho da chuva. No meio dessa história aparentemente sem pé nem cabeça, Roberto Gomes não faz nenhuma menção ao sobrenatural, mas, sim, uma crítica ao modelo tradicionalista e extremamente conservador do ambiente acadêmico. Além de uma bela análise sobre as verdadeiras intenções de um escritor frustrado, que descobre que queria escrever somente para ter o prazer de ter os seus livros nas prateleiras de uma biblioteca. Para isso, usa de muito humor e de uma narrativa simples e muito bem estruturada — embora, até pelo menos a metade do livro, as histórias do defunto, dos professores, alunos e vigias não obedeçam a uma ordem cronológica.

Só uma coisa não cai bem nesse livro: a capa dessa edição da Criar. Sob o nome da obra, o desenho de um homem com seu chapéu de palha (imaginou um cara com chapéu de palha em Curitiba?), deitado ao pé de uma árvore, descansando alegremente. Só faltou aquele matinho no canto da boca. Ô, mundão véio sem portera, sô!

O autor — Roberto Gomes é de Blumenau (SC), mas veio para Curitiba aos 20 anos, onde licenciou-se em Filosofia pela PUC-PR. Foi professor universitário 1970 e 1998. Seu primeiro livro foi Crítica da razão tupiniquim (1977). Depois publicou, entre outros, Sabrina de trotoar e de tacape (contos, 1979), Antes que o teto desabe (romance, 1981), O menino que descobriu o sol (infantil, 1982) e Exercício de solidão (1998).

Alegres memórias de um cadáver
Roberto Gomes
Criar Edições
160 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho