A crítica contemporânea mais representativa, no sentido da qualidade ou da quantidade, tem se norteado basicamente a partir de três possibilidades de postura. Verificando resenhas jornalísticas e trabalhos acadêmicos acerca da literatura hodierna, é muito corrente, em primeiro lugar, a intervenção descritiva, apresentando ao leitor um retrato da obra com absoluta isenção de juízo. Neste caso, considera-se que a obra fala por si só, e, sendo ela a protagonista da ocasião, uma abordagem dissertativa pode prejudicar sua verdade e seu caminho, pois seria grande a possibilidade de interferência prévia sobre um eventual futuro leitor.
Ao lado dessa tendência verifica-se outra igualmente desinteressada pela atuação opinativa, mas nem por isso dada à mera retratação. Filiada a um ideário que se poderia chamar de concrítico, essa vertente (muito forte nas revistas de artes visuais) renuncia ao que considera o divórcio entre estudo e coisa estudada, e, com isso, manifesta-se em linguagem criativa, buscando ser tão artística quanto o fenômeno com que se depara. Para essa crítica, o conhecimento da obra não se dá pela identificação de fatores que a compõem, tampouco pela emissão de referências sobre a mesma. Conhecer (do latim, “conascere”) é nascer com o quê ou com quem se observa. Nesse âmbito, a ciência que se vem a ter da arte não se dá pelo crivo exclusivo do exercício racionalista, e então obra e análise contaminam-se mutuamente para formar uma unidade singularizada pela diversidade. Dialogam.
Numa terceira via de possibilidade analítica, a crítica judicativa, via de regra vista hoje como anacrônica, por restrita ou arrogante. Mas ela resiste, pois acredita que não há boa análise sem aval. Costuma-se ver nisso um ato predisposto à condenação, movida por uma subjetividade intolerante e parcial, como se o crítico dissesse “sim” ao que lhe adoçou o gosto, e não àquilo com que não simpatizou por supostamente não ter compreendido. Trata-se de uma interpretação infundada. A crítica judicativa não se limita a dizer, por menor que seja o espaço num determinado veículo, se a obra é boa ou ruim (aliás, qualquer crítico de qualquer vertente, se for de fato crítico, está longe disso); antes, ela considera uma série de pressupostos e contextos para perceber o que ocasionou ou impediu o êxito, entendendo que a fatura da obra é fruto de um processo de aspectos diversos, e não um dado pronto e acabado da capacidade expressiva do artista. Exemplo ímpar dessa linhagem encontra-se na figura de Barbara Heliodora, crítica de teatro.
Dificilmente alguma dessas três correntes se dá de modo estanque e infenso à presença das outras. Apesar disso, parecem não compreender que têm mais a dizer reunidas do que segregadas. Há descrições absolutamente precisas, a revelar um crítico farejador (no melhor sentido da palavra), mas pecam pela imperiosa ausência de posicionamento e pela linguagem não raro insípida; na outra ponta, surgem discursos de alto quilate estético, mas tão desprovidos de mínimas referências objetivas que parecem querer o lugar de destaque que, se não é só, é também da obra; e o juízo, se posto como princípio e como fim, pode obstruir o entendimento de expressões artísticas solicitadoras de reflexões mais apuradas.
Por que se fazem essas considerações se estamos no espaço da resenha? Porque Poesia é não, de Estrela Ruiz Leminski, é desse tipo de livro que inspira juízo imediato, e talvez seja prudente checar possibilidades.
Anticonvencional
Poesia é não é livro de uma jovem filha de um casal de poetas — Alice Ruiz, que aparece no cenário cultural também como compositora de música popular, e Paulo Leminski, figura lendária no imaginário dos que prezam a idéia de poeta como um absoluto anticonvencional. A referência ao parentesco renomado costuma desagradar aos autores que buscam seu próprio espaço, mas a assinatura de Estrela parece desautorizar a suposição. No caso dela, vê-se no livro uma postura francamente dada à imagem anárquica, colhida dos genitores. Mas não só pela herança, aqui fala mais alto a juventude espiritual da moça, intolerante com formalidades literárias — “rima rica o cacete/ prefiro a plebe dos verbetes” — e com qualquer maneira de comportamento protocolar: “não respondi ao bom dia do vizinho/ do meu benzinho/ recusei todos os carinhos// de codinome escolhi: Insana/ só pra me sentir menos ameaçada/ por esta condição humana”.
O livro de Estrela, como objeto gráfico, é também edificado de acordo com o princípio da inovação, e, por isso, vê-se pelas páginas uma espécie de isomorfia: poético, no sentido de inovador, deve ser um livro de poesia, não apenas pelos textos que abriga. A constante mudança da cor do papel, a inserção de imagens que complementam os poemas (sem estarem ali somente para ilustrarem-nos) e a alteração da fonte nas vezes em que Estrela diz o que a poesia não é (algo muito recorrente) fazem do volume um parque onde pululam os cabelos despenteados, as cores de pernas descruzadas e as línguas contra as ínguas, da linguagem ou do ser: “minha hermana/ (…)/ me ensinou que/ a gente não/ mas a vida sim/ assobia e chupa cana/ o que sou eu/ mas não em mim/ nela emana”.
Além desses, pode-se dirigir a Poesia é não um terceiro olhar, e ele vê que a atitude termina por roubar o espaço da própria poesia. A rigor, o livro de Estrela Ruiz Leminski assemelha-se à publicação de gestos adolescentes feitos para dar a blogues ares de intelectualidade. A excessiva necessidade da autora de se mostrar moderna, diferente e única a conduz diretamente à defasagem criativa, restando a ela repetir fórmulas lecionadas pelos concretistas (tão ao gosto de seus pais), as quais, em sua mão, revelam raquítica fragilidade. A exploração fônico-gráfica de vocábulos similares apresenta-se logo na abertura do volume — “nossa comunicação:/ de/ enviável/ a/ inviável” —, e se perpetua pelo decorrer, mas sempre com igual simplismo: “atento/ ao ontem/ anteontem”. Quando se buscam outras alternativas, o resultado recua mais, sobretudo nas investidas supostamente humorísticas, breves (mas ocupando duas páginas inteiras): “— Eu?!// Jesus Cristo é o Senhor!!!”, ou alongadas, como em Poesia, 18 seculinhos:
Especialista em línguas, atendo a ambos os sexos. Faço oral, marginal ou o que a imaginação mandar. Sem rima cobro mais caro. Atendo em domicílio, em local próprio, ou no meio do caminho, se tiver uma pedra. Topo poetas menores, mas peço sigilo. Garantia da sua completa satisfação ou suas palavras de volta.
O livro ainda tropeça por um ego febrilmente exibido. Como se não bastassem os textos muito próximos do adolescente (independente da idade) que se crê o ser mais alternativo do mundo — “eu sou o meu mistério” —, toda a orelha do livro funciona como vitrine das importâncias de Estrela: “eu não telefono muito para as pessoas, nem as que (sic) eu tenho MUITAS saudades (…). eu, às vezes, não sou eu”. Como disse José Paulo Paes num de seus poemas, “nada envelhece tão depressa quanto a novidade”. O livro de Estrela Ruiz Leminski, de tão avançado, já nasce anacrônico. Sua última página diz “A poesia não sou eu”. Faltou dizer que ela também não está no livro. Enquanto isso, autênticos poetas, por falta de sobrenome, têm seus originais mofando nas gavetas cimentadas das editoras (e quando são recebidos). Triste país.