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Resenha do livro "Inverdades", de André Sant’Anna
André Sant’Anna, autor de “O Brasil é bom”
01/01/2010

Um título sugestivo; será que o conteúdo corresponde? É natural a pergunta quando nos interessamos por um livro devido ao seu título. Quanto ao livro em questão, comecemos pela citação inicial: “Qualquer semelhança com fatos reais, neste livro, é mera coincidência. As pessoas citadas não existem e nunca existiram. Eu também não existo”.

Trata-se, obviamente, de uma provocação. Uma provocação muito acintosa. Faz-nos supor que dentro do livro há uma grande surpresa, algo que nos tire do senso comum, afinal, nem as pessoas citadas, nem o autor existem — é tudo obra da Virgem Maria.

Após ler Inverdades, fiquei meio zonza, sem saber por onde começar a resenha, mas, aos poucos, me centrei e decidi que, uma vez assumida a tarefa, eu teria que ir adiante; não poderia me omitir diante do texto posto, da responsabilidade assumida.

A melhor forma de analisar um livro é não ter uma postura fechada, mesmo quando concluímos que o detestamos, afinal, gosto não se discute. Por isso, procuro compreender um livro de contos, texto a texto. Em geral, encontramos, numa antologia, muitas variações no nível de qualidade formal, de criatividade. Dessa forma, se pode falar mais abertamente sobre o trabalho realizado pelo autor.

No caso de Inverdades, percebo uniformidade formal, ou seja, o conjunto é harmônico. Mas paro por aí e começo a avaliar um a um, para poder extrair da literatura de André Sant’Anna algum conteúdo submerso na pirotecnia humorística proposta pelo escritor.

Em Lula, lá, de novo, temos o deboche gasto, tipo José Simão, menos picante, mas tão ruim quanto. O texto é baseado sim em fatos reais, apela para situações pessoais e políticas que se referem ao presidente Lula. Há preconceito explícito, como nesta passagem: “O pessoal da Metalúrgica sacaneava o presidente da República e um outro companheiro-colega que tinha perdido o dedo indicador num torno, dizendo que os dois formavam uma dupla sertaneja (…)”.

Ou nesta:

O presidente da República foi servido com mais cerveja, tomou um gole, deu um trago no cigarro Arizona, tirou o boné e fechou os olhos, coçando a barba. O presidente da República adora réveillon, uma festa que, para ele, só começou de verdade quando veio para o sul. O presidente da República, muito emotivo, sempre chora quando bate a meia-noite e todo mundo se abraça. E a Cidra Macieira faz cosquinhas em seu nariz. Até meia-noite, cerveja e Arizona. Depois da meia-noite, só Cidra Macieira. Todo o ano o presidente da República para de fumar.

Achincalhar com hábitos da nossa cultura popular é lamentável. A Cidra Macieira é uma bebida popular, está arraigada na nossa cultura. Isso para não falar demais sobre o fato de um nordestino chegar ao sudeste e conhecer o réveillon. Não é a história do presidente Lula que está sendo apedrejada, mas a nossa cultura.

O leitor mais exigente se perguntará: mas não são apenas passagens descontextualizadas? Pior que não. As passagens citadas refletem o texto integral, verborréia em cima do cotidiano de políticos e famosos, muito melhor explorados pelos jornais diários.

Em Só os fenômenos são felizes, o autor esboça uma intriga interessante: há duas Danielas, uma pobre e outra rica e famosa — um mito. O Ronaldo (quem não conhece o Ronaldo?), óbvio, deixa a pobre para se encantar com a rica.

Infelizmente, o autor desanda para o clichê e o texto redunda na mesmice pseudo-humorística, como se pode confirmar nesta passagem: “Alguns anos antes, quando ainda era Ronaldinho, um adolescente muito tímido, que levava a mão à boca toda vez que sorria, para esconder os dentes protuberantes e tortos, até tentara passar na peneira do Flamengo (…)”. É surpreendente a insensibilidade do autor para com a realidade cruel do nosso povo que, muitas vezes, se estampa em casos famosos como esse. Ilustra melhor ainda o que afirma esta passagem:

O Ronaldo não amava a Daniela suburbana. O Ronaldo amava era a Daniela modelo, a Daniela da televisão, a Daniela Cicarelli. Coitado. Mas o Ronaldo sabia que um rapaz como ele, pobre, feio, sem instrução, sem profissão definida, sem carro, sem nada para oferecer a uma mulher maravilhosa como a Daniela artista, não arrumaria mesmo nada melhor do que a Daniela de peito caído.

É muito difícil compor uma antologia só com textos de qualidade, simplesmente porque qualidade não rima com quantidade. Isso é verificável em quase todos os livros, sejam de contos, crônicas ou poemas. André Sant’Anna surpreende positivamente com o texto Você já experimentou? Redondo, exato, poético, ele descreve o processo de criação com originalidade. Na mesma linha, Bird nos toca a sensibilidade e o pensamento.

Em Simpatia pelo demônio, o autor usa sua melhor receita. Mas receitas não são suficientes para um texto vivo. Na falta do que dizer, o autor transita pela vulgaridade, com ao menos dois propósitos: extrair humor ou poesia do cotidiano de figuras famosas. Como já escrevi no início da resenha, em matéria de humor, os textos de André Sant’Anna são pobres. Já, pelo lado poético, ele esboça alguma força. Mas como conjunto de textos, Inverdades não vale a pena.

Inverdades
André Sant’Anna
Editora 7Letras
68 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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