Vamos começar pelo aspecto imutável: Ernst Jünger foi militarista, apoiou, e não sem querer, a ascensão do nazismo (participou das duas grandes guerras mundiais como militar e também tomou parte na ocupação de Paris pelos nazistas), mais tarde abraçou um niilismo até certo ponto sofisticado. Importante lembrarmos sempre disto: não é o fato de escrever bem que o exime de culpa. Nazista regenerado talvez seja mais perigoso que nazista condenado. Não foi por acaso que, durante a tirania de Hitler, quase todos escritores, atualmente de importância reconhecida, foram perseguidos. Exceto quem? Quem? Ernst Jünger. Não, ingênuo leitor, eu não entregaria meu cachorrinho para o Jünger dar uma volta com ele pelo quarteirão. Pois bem, Jünger é considerado gênio por muitos, de nós e dos outros. Andam lendo pouco, ou mal, o Graciliano Ramos, o Guimarães Rosa, o Erico Verissimo, o Campos de Carvalho, o Mário Araújo, por exemplo.
E por falar em ingenuidade e genialidade, lembremos o que disse seu compatriota (dele Jünger) Schiller: “Todo gênio verdadeiro deve ser ingênuo. Somente sua ingenuidade o converte em gênio”. É óbvio que a ingenuidade somente não faz um gênio, mas é indiscutível que Jünger não tinha o menor traço de ingenuidade. Não desconheço o que disse Freud sobre a personalidade genial. Diz que o gênio vive sempre sob tensão e quando a tensão se torna exageradamente forte, quase insuportável, essa tensão migra para a obra. Entre vida e obra de Jünger, percebo as contradições, e não consigo tomar partido a favor dos atenuantes. Se Nos penhascos de mármore é quase poesia, é quase fábula, é quase infanto-juvenil, é quase… Temos um menino que alimenta serpentes, ele bate no prato e elas se juntam a ele para beber leite, as mesmas serpentes se põem na vertical numa atitude pouco amistosa frente a inimigos. Como se pode notar, é quase infantil, mas certamente você, semiótico leitor, fará uma leitura extremamente culta do signo serpente e enviará para este tosco aprendiz o que isso quer dizer. Aguardo ansioso. Enfim, quase…
E como todo quase, não chega a impressionar.
Mas passemos à obra.
Nos penhascos de mármore é uma de suas novelas mais conhecidas e serve também de emblema da contradição que orientou sua vida. De soldado de Hitler a suspeita de um catolicismo dado às imagens que pululam nessa narrativa, Ernst Jünger é a confirmação da tese que afirma ser o homem a causa e o efeito de todas as tragédias da história e alimentar a ira nacionalista como uma virtude é um equívoco vergonhoso. Uma obra literária por melhor que seja não terá poderes para limpar tamanha mancha. Nos penhascos de mármore é uma bela novela, como tantas que tantos escritores brasileiros escreveram e escrevem. Embora isso não seja pouco, não vamos classificá-la como algo na ordem das obras excepcionais. Longe disso. Caso o leitor atento não se disponha a fazer inúmeras analogias e forçar a barra na intenção de ver o nazismo aqui e ali, Nos penhascos de mármore poderá ser encarado como uma competente literatura infanto-juvenil, sem esquecer a gama de valores arquetípicos representados pela variedade de personagens que pululam pelo convento de Padre Lampros, sem esquecer as lições de botânica e um longo esclarecimento sobre o comportamento das víboras, sem olvidar a fantasia, o fantástico, o maravilhoso…
Mas falta algo…
O protagonista (anônimo) vive junto com o irmão, Otho, num país próspero onde reina a felicidade. Da localidade que habitam vislumbram Marina, um lugar onde natureza, arte e ciência convivem em harmonia. A difícil combinação ideal do amor com o conhecimento. Mas é sempre assim: se está tudo bem, não tardará a entrar em cena o vilão. E nesse caso, vem da Mauritânia o cruel ditador (alguns dizem ser a representação de Hitler, mas pode ser qualquer exemplar do autoritarismo) determinado a pôr um fim em tamanha felicidade e estabelecer seu reinado de violência. Como disse acima, muitos viram nisso uma denúncia do regime nazista. Se olharmos para o protagonista, um ser que transborda virtudes — sejam individuais, sejam coletivas — e creditarmos ao autor tais qualidades, ou admiração por tais aspectos, aí sim, com certa forçadinha de barra, pode-se dizer que se trata de uma demonstração de repúdio ao nazismo. Seguindo nessa linha, temos um outro personagem (é praticamente dele o capítulo 14): um monge cristão, o padre Lampros. Ainda na esteira do “pode-se dizer que”, podemos afirmar que esse episódio representa o primeiro contato do autor com a igreja católica? E não foi dos mais amistosos como podemos ver no trecho que segue.
Quando nos aproximamos dele, fomos tomados por certa inquietação, pois a face e as mãos desse monge pareciam-nos insólitas e sinistras. Se assim posso me expressar, elas pareciam pertencer a um cadáver, e era difícil acreditar que nelas circulassem o sangue e a vida.
O sombrio Padre Lampros (“Mas a alegria também não lhe era estranha”) é a chave do enigma de Nos penhascos de mármore. Padre Lampros é um personagem que diz mais com seus silêncios que com suas palavras, seja em questões corriqueiras, seja no campo científico, onde é respeitadíssimo, sábio evita tomar partido em debates entre escolas de diferentes orientações. Lampros guardava seu passado a sete chaves, restava-lhe um anel onde se via a asa de um grifo e as palavras “tem motivo a minha paciência”. Numa edição espanhola lê-se: “espero en paz”, que me agrada bem mais. Como diz o narrador, daí se explicam duas características de Lampros: orgulho e modéstia. Defendia o princípio de que “cada teoria significava na história natural uma contribuição à gênese das coisas, porque em cada época o espírito humano conceberia a criação de uma nova maneira, e em cada interpretação não existiria mais verdade do que na folha de uma planta, a qual se desenvolve para logo fenecer”. Por essa razão, nomeou a si mesmo Filóbio, “o que vive nas folhas”. Deixando à mostra, novamente, as duas características: orgulho e modéstia.
Realidade por inteiro
O padre vivia recluso em seu mosteiro, voltado aos estudos, às orações e à atenção aos peregrinos; mesmo assim, do mundo tudo sabia, era querido e respeitado não só por católicos, mas por todos, inclusive aqueles que elegiam outros deuses. Quando o perigo se ensaiava, não disfarçava certa alegria e regozijo. “Ele, que vivia como em sonho atrás dos muros do mosteiro, era talvez o único dentre nós que enxergava a realidade por inteiro.”
Longe de ser egoísta, chegava a descuidar da própria segurança, no entanto, não negligenciava quando se tratava da tranqüilidade do seu povo.
Mas falta algo…
Aspecto que não pode ser esquecido é o tom fabular de Nos penhascos de mármore capaz de alinhá-lo entre os grandes títulos do gênero e de fazer analogias inclusive com Pedro e o lobo, Chapeuzinho Vermelho e Bambi. Inclusive sobre Harry Potter há um estudo relacionando com o período e práticas nazistas. Como diz o meu papagaio: “neguinho delira, neguinho delira”.
Continuando com Lampros, seu mosteiro, seu vasto conhecimento e bom senso permitem ao leitor desconfiar de uma certa cumplicidade entre ele e o autor. Percebem-se no monge os valores defendidos por Jünger como o conhecimento, orgulho, autocontrole e a defesa de certos princípios como o dito aqui anteriormente. Pairam suspeitas de que Lampros seja fruto de algum contato do autor com o catolicismo. E pelo visto agradou.
Dizem também que a vida só tem transcendência quando somos capazes de salvar-nos como homens. Não sei se Jünger chegou lá.
Mas falta algo…
O narrador é um ser estranho e enigmático. Não se pode dizer que seja alguém que tenha uma relação com o mundo que o rodeia, que vá além da observação de supostas leis. Sua moral não é das mais claras. Ao leitor fica a desconfiança de estar diante de alguém que ama a aventura, no entanto, vários medos o impedem de vivê-la em sua totalidade. Falta-lhe uma dose de Dom Quixote.
Mas falta algo a Nos penhascos de mármore.
— O quê?
— Faltam duendes, castelos e fadas.