Falências modernas

Novo romance de Claufe Rodrigues narra com olhar impiedoso a decadência de uma geração
Claufe Rodrigues. Foto: Divulgação.
05/04/2015

A miséria desaba sobre Angelo, o Billy Dog, letrista da falida banda de rock Os Miseráveis. Abandonado pela namora, Brenda, há um ano está refugiado na fictícia Curuti, uma cidadezinha no sul do país. Mora numa casa arruinada, cercado por uma imensa coleção de discos (O Museu Vivo do Rock) e na companhia de uma cadela à beira da morte. É um zumbi, que o amigo e antigo parceiro Demetrio tenta resgatar.

O novo romance de Claufe Rodrigues, Cachorras, transita pelo universo de falências que doma a vida moderna. Angelo é o protótipo dessa modernidade desesperada. Menino de família rica, na maturidade, depois do relativo sucesso como compositor, já nada escreve e sustenta sua depressão com o dinheiro do aluguel de imóveis em São Paulo. Nada faz da vida senão chorar a perda de Brenda; lamentar as cobranças da mãe, que mora numa clínica para idosos também em Curuti; falar mal da irmã, que se masculiniza enquanto briga pela repartição do dinheiro dos aluguéis; além de cuidar de Blondie, a cadela que morre aos poucos.

A analogia do título do romance, por mais politicamente incorreto que possa parecer, é mesmo com as três mulheres e a cadela. Há outras presenças femininas ao redor do personagem, como a filha e a ex-mulher, mas estas aparecem de maneira secundária, apenas para salientar o desprezo que sentem por Angelo. Tem ainda a empregada, a filha da empregada, uma cigana, uma vizinha, uma veterinária e sua secretária — a lista de mulheres que o atormentam parece infinda, mas para por aí.

Geração vasilha
Embora Claufe Rodrigues marque sua prosa por um claro tom de humor — que às vezes descamba para pontadas de morbidez, um humor negro, enfim —, todo o texto se fecha num ambiente pesado, denso e até escatológico. Nada, no entanto, capaz de chocar os estômagos mais delicados. São cenas de um cotidiano de desesperança que vem se definindo, cada vez mais se adensando como marca de uma geração perdida no desespero das indefinições. A geração de Billy Dog e de The Lips, ou melhor, Demetrio, foi gestada e desenvolvida num momento de transição. Parafraseando Eça de Queiroz, diante do barro cru essa gente optou por moldar uma vasilha, quando poderia esculpir um deus.

Adolescentes num ambiente de nenhuma responsabilidade, Os Miseráveis usaram a música como esperança de criar fama e fortuna. De certa maneira, tiveram sucesso com sua relativa qualidade, mas o mundo do espetáculo não foi feito para amadores. A banda se dissolve na esteira das vaidades. Os dois principais astros seguem trilhas opostas. Billy vira o zumbi de Curuti e The Lips “se entrega ao mercado”: namora a sedutora Saphira, belíssima cantora de músicas de sucesso, e investe numa carreira solo de certo êxito, contanto que cumpra todos os desejos dos produtores da indústria fonográfica.

Tudo se passa, assim, dentro da famosa sentença da esfinge de Sófocles. Decifra-me ou te devoro. E todos são devorados. Claufe Rodrigues reflete sobre este tempo em que as urgências e as necessidades são tão intensas que nada pode parar a roda do moinho que vai triturando desejos e homens.

É um mundo real? Em parte, sim. As nulidades artísticas engolem com prazer os espaços. Uma leitura que faria sucesso na segunda metade do século passado falaria de aldeia global e cultura de massa. O problema é que essas sentenças teimam em não perder a atualidade. Por tudo o que está dito em Cachorras, sem qualquer surpresa maior, o mundo se nivela por baixo, pelo lado B de todas as coisas, pela porção mais medíocre que existe.

Claro que, em tese, o romance trata de amores doentios e relações pessoais marcadas pelos exageros e pelos extremos da possessão, mas isso não é tudo. Rodrigues descreve esses conflitos, essas dores, como quem tenta apenas analisar o tempo que lhe cerca, com olhos críticos e cruéis. De fato, não há piedades. Todos parecem descambar pelo ralo. Até mesmo Demetrio e Saphira. Mesmo com o glamour que o sucesso permanente lhes dá, são de fato pessoas normais se entregando às determinantes milionárias do espetáculo para fugirem de seus pesadelos pessoais. Saphira tem pavor de “perder o carinho do público”, e Demetrio de voltar a ser um ninguém em Capão Redondo. Resultado? Apesar das viagens, das roupas caras e da admiração de uma multidão, como Billy, são ao seu modo zumbis.

Caleidoscópio insano
Cachorras é um romance ágil, veloz, com cenas cinematográficas. O encontro de Billy com as entidades do candomblé é risível, mas verdadeiro. Claufe Rodrigues ri de tudo isso, ou pelo menos nos conta com forte dose de humor, para demonstrar a fragilidade de certas crenças, mas também para desvendar a arrogância natural do protagonista que, mesmo na mais absoluta miséria humana, não se despe do pensar do menino de classe alta mimado pela mãe.

Esse discurso multifacetado e aparentemente desordenado tem sua lógica. O mundo moderno, dentro das falências que gera, não deve nem pode ser lido com um único olhar. Suas partes se multiplicam e se unem como um caleidoscópio insano. Cachorras opta por se lançar neste jogo. Fala de paixões, convivências, fracassos, sucessos, misticismos — uma geleia geral risível, apesar dos intensos momentos de depressão que domam todos os personagens, como a nos dizer: taí o mundo a que chegamos.

Um romance divertido e real, enfim.

Cachorras
Claufe Rodrigues
Maquinária
141 págs.
Claufe Rodrigues
Nascido no Rio de Janeiro, é poeta, jornalista, compositor e produtor cultural. Tem dez livros publicados, entre eles O arquivista, Amor e seus múltiplos, Escreva sua história e O pó das palavras. Cachorras é seu segundo livro de ficção.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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