Falas ferinas

Lívia Garcia-Roza retrata os subterrâneos da mulher em "Restou o cão"
Livia Garcia-Roza: narrativas curtas que primam pela síntese.
01/06/2005

Qual foi a grande conquista da mulher ocidental nos últimos cem anos? O direito de falar livremente sobre suas questões mais íntimas, sem ser censurada pela força masculina. Mas o exercício desse direito, seja na literatura, no cinema e na televisão, seja no cotidiano, muitas vezes a leva a discursar compulsivamente. Falar. Dizer. Relatar. Nunca na literatura brasileira o discurso direto foi tão usado. Por mais que as palavras não alcancem representar com fidelidade os movimentos tortuosos do espírito, as filhas, as mães e as esposas da primeira coletânea de contos de Livia Garcia-Roza (psicanalista, ou seja, acostumada a escutar) precisam, querem, necessitam falar, dizer, relatar, narrar, contar, confessar. Raramente com ternura. Freqüentemente com raiva e desprezo.

Restou o cão reúne 25 contos curtos em que a voz masculina, em geral tão cartesiana e tão equilibrada, pouquíssimas vezes assume o controle do discurso. Manifestações bastante violentas da sexualidade são relatadas, por exemplo, pela prostituta mirim de Essa menina e pela menina interessada nas cambalhotas copulativas de sua empregada, em Sexo. Reclamações generalizadas de esposas contra seus maridos alheados e insensíveis podem ser ouvidas em Restou o cão, Logo hoje, Papoulas e Os sessenta. Reclamações generalizadas de mães contra seus filhos independentes e mal-agradecidos podem ser acompanhadas em Saco e Instruções. O mundo solitário e sádico da infância imaginária ou da infância real está em Wallace e Cristina. Em Madame Rapunzel e O carneirinho, da mesma maneira que em mais da metade das narrativas desse livro, as relações familiares surgem sem a maquiagem dos hábitos e dos rituais exaustivamente cultivados. E assim vai, no ziguezague das falas ferinas.

“Falo, logo existo”, esse poderia ser o bordão das protagonistas da coletânea recém-lançada dessa autora que, ao permitir que venham à tona, com ironia mas também sempre com muita elegância, os subterrâneos da mulher, se aproxima da exímia e envolvente Lygia Fagundes Telles. Agarradas ao seu rancor e ao seu pavor, as filhas, as mães e as esposas criadas por Livia Garcia-Roza falam, dizem, relatam, narram, contam, confessam compulsivamente. De maneira cômica. De maneira melancólica. De maneira esquizofrênica. Essas mulheres falam, logo existem, mesmo quando se sentem na obrigação de justificar, quase constrangidas, o pipocar de vocábulos raros, cultos: “Vi, sim, no dicionário!”, vão logo avisando.

A maior parte dos relatos de Restou o cão chega até nós transtornada pelo transbordamento, pela voz embargada, pelo gozo conquistado depois de infinitas batalhas contra a hegemonia masculina principalmente no plano da literatura. Agora são as crianças, as mães e as esposas que põem em xeque, por exemplo, a própria instituição matrimonial. Na obra de Livia Garcia-Roza — além desta coletânea de contos, recomendo também os romances Meus queridos estranhos e Cine Odeon —, o casamento e a família têm sua lógica particular, suas leis específicas, sua coerência própria. A lógica, as leis e a coerência da dissidência. Para as crianças, as mães e as esposas de Livia Garcia-Roza a sociedade atual, moldada pelo macho da espécie (tipo que também dá as caras em dois contos), se organiza sobre um palco, e essa idéia de encenação é explicitada em Teatro, um dos melhores contos da coletânea.

Restou o cão e outros contos
Livia Garcia-Roza
Companhia das Letras
109 págs.
Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho