Em tempos passados, quando os jornais funcionavam como centro do campo literário, a discussão sobre literatura era acessível a um público mais amplo e heterogêneo. O crítico formado nesta tradição se distinguia por ser portador de conhecimentos teóricos aprofundados em vastas leituras, embora se expressasse em uma linguagem pouco técnica. Era um homem de letras, ponto de contato entre o produtor literário e os leitores de jornal. Como a recepção de seu texto se dava de forma não-sectária, sua linguagem tinha que primar pela comunicação. Não se tratava apenas de usar um jornalês eivado de modismos lingüísticos — tal como acontece hoje. O homem de letras se concebia como um escritor, desenvolvendo um estilo próprio para produzir uma peça literária.
Circulando em grandes jornais, principalmente na primeira metade deste século, quando houve um grande impulso civilizatório em nossa cultura, a crítica era uma tarefa de maior relevância por propor um projeto de construção de um país de leitores, na tentativa de substituir o anterior, basicamente iletrado. Exercida como missão, ela fazia avaliações sistemáticas da produção cultural do país e do movimento das idéias, nossas e/ou importadas, atuando como caminho para a conquista da cidadania através da leitura. Com a entrada de outros meios de comunicação e com a mudança do conceito de crítica, houve um esfacelamento deste tipo de discurso.
A partir da expansão das faculdades de letras, defensoras de uma linguagem técnica para a reflexão sobre a arte, foi sendo criado um fosso entre o produtor de idéias e o leitor comum. A especialização segregou a crítica ao espaço do jargão universitário. Com isso, o modelo até então vigente sofreu a acusação de não ter rigor científico, tendo sido negado em nome de uma objetividade própria das ciências exatas. Os universitários, assumindo postos nos jornais, criaram guetos, transformando a discussão literária em coisa para iniciados. Ao se querer cult, esta nova crítica produziu uma reclusão da literatura. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (Instituto Moreira Salles, 1996), João Cabral de Melo Neto lembra que “a crítica universitária não cria um público para o autor”(p.27). Podemos dizer, portanto, que o desaparecimento do antigo modelo foi extremamente prejudicial para o autor que, embora estudado nos bancos universitários, é praticamente invisível fora dos domínios de uma minoria de intelectuais.
O crescimento do poder das faculdades de letras se dá paralelamente ao movimento de importação de livros estrangeiros, também fortalecido a partir de 1950, período em que se verifica uma expansão muito grande das atividades editoriais no Brasil. Começamos a oferecer, a leitores que não dominam outros idiomas, livros estrangeiros em traduções, conquistando um novo mercado. Nas décadas anteriores, eles eram lidos no original ou em traduções para línguas de prestígio, como o francês. Com a onda de democratização e de globalização que se segue à Segunda Guerra Mundial, as editoras encontram na tradução uma maneira de alimentar o desejo de contemporaneidade do brasileiro, fornecendo todo tipo de obra. Como a crítica de rodapé já não tem mais o mesmo prestígio e como a universitária prefere circular em uma linguagem e em um espaço fechados, os jornais passam a exigir um profissional para comentar e divulgar os lançamentos.
É aí que entra em cena o resenhista, responsável pelo marketing editorial. Nesta atividade se engajam inclusive os escritores, que encontram a chance de favorecer amigos e grupos e de fortalecer o seu orçamento. Mas o grosso desta ocupação fica com o jornalista, que vê o livro como um acontecimento, como uma notícia, como objeto de consumo e não mais dentro de um projeto de ação histórica.
O seu objetivo último é anunciar o livro, impulsionando a comercialização. Dentro deste contexto, o crítico virou uma figura solitária, não raro tomada como ranheta por tentar, contra a corrente histórica, exercer um ofício judicativo. O espaço crítico se torna um espaço comercial, levando o jornalismo de cultura a se metamorfosear em uma vistosa vitrine de shopping center.
É bom lembrar ainda que o crítico caracteriza-se por ser um leitor profissional, que pode ignorar as propagandas, as opiniões consensuais, os apadrinhamentos e, com base em incontáveis obras lidas, sustentar uma análise própria. Além disso, ele escreve regularmente e por trás de sua atuação existe sempre um projeto literário e social. Ele não escolhe os livros para analisar de acordo com as regras de mercado, com o renome dos autores ou a atualidade do tema, mas a partir de uma idéia muito bem definida, e própria, do que é válido. Já o resenhista, marcado pela passividade, pois é contratado para apresentar o livro ao leitor, mais escreve do que lê.
Os cadernos de cultura e as revistas ficaram nas mãos destes dois profissionais (o crítico universitário e o resenhista), que atuam junto a segmentos diferentes, estabelecendo uma distinção entre o leitor comum e o culto. Este só consome o biscoito fino do ensaísmo hermético, aquele fica com a fast food do resenhista. Nenhuma destas atividades, no entanto, consegue desempenhar a grande função crítica: formar o leitor livre de todo tipo de peias.
A crítica tem que ser exercida como uma atividade formativa, que apenas secundariamente deve ser informativa. Formar o leitor é muito mais do que criar um hábito de consumo de arte, é promover a conquista da cidadania pela leitura.
Para que este importante papel possa ser retomado é necessário que o crítico ultrapasse a condição de resenhista e de especialista. Daí a necessidade de uma formação a mais eclética possível para que ele possa ser um leitor sem preconceitos.
É de um profissional com este perfil que necessitamos. Sem ele, ficaremos entregues às regras do mercado, contra as quais deve ser a luta de todo crítico autêntico. Para Terry Eagleton (A função da crítica), esta atividade, que nasceu contra o estado absolutista, só pode reconquistar sua relevância social quando se fizer instrumento de luta contra o estado burguês. Para isso, ela deve deixar de fazer parte do ramo das relações públicas da indústria livreira e romper com o fechamento das discussões acadêmicas.
A arte da crítica em 49 teses
A crítica exige uma vocação para ser odiado e perseguido.
Bom crítico não é quem lê muito — e, por extensão, quem cita destrambelhadamente — mas quem lê certo.
Ao contrário da biblioteca do colecionador, a do crítico é composta essencialmente por volumes lidos.
Num certo sentido, o crítico não dialoga com os leitores, mas com os livros.
As relações de amizade em crítica chamam-se subserviência ou inimizade.
Bom crítico é o que se repete nos subterrâneos de seu texto, sem comprometer as variações de superfície.
Num único texto — sobre, por exemplo, poesia — deve estar contido tudo que o crítico pensa sobre o assunto. Isso torna o discurso crítico metonímico. Se o livro X apresenta tais e tais defeitos, os demais livros dos poetas de sua família incidirão, até prova em contrário, nos mesmos equívocos.
Um poeta me liga para reclamar que não comentei o livro dele, sem perceber que sua obra já fora julgada nas restrições que fiz a outras similares.
Se o crítico escrevesse uma carta de agradecimento para cada livro que recebe não teria tempo para cometer os seus artigos.
Crítico, trapezista sem rede de segurança, tem sempre as mãos untadas.
Só escreve crítica que tem a neurose de ser útil.
Nunca ler as apresentações dos livros — prefácios, posfácios etc. Quem quer ter uma idéia pessoal da obra só deve contar com sua intuição e seus preconceitos.
Preconceito, em crítica, é tão importante quanto a sensibilidade. Ele deixa claro que não se tem medo de contrariar o alegre coro das comadres.
Crítico, porta-voz das maiorias silenciosas, deve dizer aquilo que os leitores pensariam, caso fossem críticos, e não o que o autor gostaria de ouvir.
Unanimidade em crítica chama-se universidade.
Mais amador do que profissional da leitura, o crítico, quando começa um artigo, mal sabe sobre o que vai escrever.
Não se produz crítica com meditação demorada, mas sob o impacto da leitura.
Ideal crítico seria escrever um único comentário por ano. O silêncio indicaria as obras frustradas. Felizmente, pelo menos para os autores, o crítico trabalha com a perspectiva da semana.
Um livro só é bom no curto interregno que o separa do surgimento de outro livro melhor. O mau livro o é definitivamente.
Crítico lê na hora do almoço, enquanto mastiga uma maçã, no vaso do banheiro, enquanto espera a filha na escola, nos intervalos da insônia, depois de fazer amor, no ônibus, na sala de espera do dentista, na rede de descanso…
Quem lê no escritório é o funcionário público.
Se a crítica de jornal fosse toda ela oriunda da universidade, o leitor só poderia ter acesso aos lançamentos através da paciente busca em velhos sebos.
Crítico que não deixar transparente o universo de suas limitações é um farsante.
A crítica não reflete a verdade sobre o livro em questão, mas deve refletir a verdade sobre quem a escreve.
A cada livro lido há, em minha biblioteca interior, um estremecimento que desencadeia uma nova rede de relações.
A biblioteca do crítico nasceu ao sabor das leituras e tem o tamanho de sua ignorância.
A atividade crítica é provisória, não só pelo meio em que é divulgada, mas principalmente pela provisoriedade dos livros comentados.
Escritor passaria muito bem sem a crítica. O leitor não.
Para o autor, o bom crítico é o que o entende. Já para o leitor, é aquele que o faz entender.
Nunca reler, depois de impressa, a própria crítica. Para não correr o risco de discordar dela.
Posso parar de escrever crítica a qualquer momento. Só não posso parar de ler. Esta disposição faz a diferença entre a vocação e o desejo de aparecer.
A existência do crítico literário ultrapassa as limitações dos críticos feministas, marxistas, concretistas, barrocos…
Crítico não argumenta em favor do autor, mas em favor da literatura.
Uma crítica autêntica nunca é morna: ou é quente ou gelada.
Bom crítico sofre de estrabismo. Ele nunca enxerga as coisas da mesma forma que os outros.
Crítico não escreve para os seus pares, mas para seus ímpares.
Um dos cardápios do crítico: laranja, abacaxi, kiwi, maracujá, maçã verde — enfim, frutas adstringentes. As que ele mais detesta: melancia, melão e banana. Nestas preferências há uma poética.
Melhor leitor é o que lê distraidamente. O pior, é o que lê em busca das contradições.
Crítica: espaço estimulante da contradição. Só têm coerência os carreiristas.
Crítico não deve ter medo de errar um julgamento. O perigo é reproduzir outros julgamentos.
A máquina que melhor define a universidade é a fotocopiadora. O instrumento que melhor define o crítico é o estilete — de preferência enferrujado.
Crítico entra no livro desarmado para tentar sair com as armas do adversário.
Os únicos amigos confiáveis do crítico: os livros.
Paraíso do crítico literário tem a forma de uma biblioteca, mas de uma biblioteca desorganizada.
Paraíso do crítico universitário tem a forma de um arquivo.
Nesta civilização pós-humana, o crítico tem a sensação de estar escrevendo nas paredes das cavernas.
A vanguarda, em crítica, é um velho bonde dos anos 20, conduzido por um velhinho bonachão, gordo e de barbas brancas, que, já meio caduco, solta impropérios em 20 idiomas, entre eles, o hebraico. Neste nostálgico bonde, os pingentes da modernidade disputam a tapa um lugar. Ele só não descarrilou ainda porque está muito bem acomodado no porão de um museu de curiosidades.
“O bom escritor não diz mais do que pensa […]. Por isso, o seu escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer dizer”. Walter Benjamim.
Quando ninguém mais perder tempo com os livros, o crítico ainda não se dará por vencido. Escreverá para o prazer gastronômico das traças.