O que exatamente diferencia o conto da novela ou a novela do romance? Há vários anos a preocupação, sempre muito mais acadêmica que autoral, de quando em quando bate à porta. O tamanho do texto foi um parâmetro relativamente bem aceito no passado e serviu para que Edgar Allan Poe, o fundador do conto moderno, formulasse uma pérola de definição no ensaio A filosofia da composição, onde afirmou ter sido sua diretriz ao compor o poema O corvo que ele se ativesse a um máximo de duas horas de leitura, sob pena de afugentar o interesse do leitor antes que terminasse a história, situação esta que abarcaria também a narrativa em prosa. Naturalmente que, ao enquadrar o conto nessa mesma hipótese, pensava ele também nas demais características do gênero — a circularidade, a existência de um só conflito, o número reduzido de personagens, a tensão, a estranheza —, elementos que não podem de fato coexistir numa única peça ficcional por tempo demasiado longo — as duas horas ou qualquer outro critério que o restrinja — para bem de conquistar e prender até o fim a atenção do leitor. Depois de Poe, tantas foram as teorias, tantos ainda são os que as formulam ou desarmam, que hoje em dia o anacronismo ganhou nova relevância na dicotômica e muito utilizada divisão das narrativas em longa e curta.
Família, da judia italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), escrito e publicado originalmente em 1977 e lançado agora no Brasil pela tradicional José Olympio Editora, vem numa capa de design simples, ousada apenas na escolha da cor do fundo, um laranja arreganhado, onde foi posto o título em letras azuis e sobre elas a foto de um gato. A tradução — impecável — é de Joana Angélica d’Ávila Melo, e a editora poupa o leitor de especular sobre o gênero pretendido, trazendo já na capa a sua classificação: contos. Mas esse detalhe não evita outras interpretações: podem também se tratar de dois romances curtos, como cogita o crítico Giovanni Raboni, ou ainda de duas novelas, assim anunciado numa revista literária on-line, e tal variedade classificatória a serviço da mesma obra é prova inequívoca de que vale a pena visitar mais uma vez o velho conceito de Poe. Nas páginas finais, seguem-se quatro estudos críticos publicados à época do lançamento original e de onde saíram as referências citadas nesta matéria, além de uma biobibliografia mínima.
Natalia Ginzburg perfila-se, ao lado de Moravia, Ungaretti, Montale, Calvino e Eco, entre os mais importantes escritores italianos do pós-guerra, mas é pouquíssima conhecida no Brasil, o que torna especialmente relevante a iniciativa da José Olympio de publicar a obra quase uma síntese do trabalho da escritora. Como a maioria dos colegas de ofício, Natalia surgiu como contista, publicando em revistas de literatura. Depois, voltou-se ao romance, gênero em que se encaixa grande parte de sua produção literária, esta também dedicada ao ensaio e ao texto para teatro. Mas poucos de seus contos encontram-se reunidos em livro. Os dois de Família, além de terem nascido no mesmo ano, formam uma unidade tão perfeita que levou o crítico Gesare Garboli a referi-los como “capítulos” e não como peças autônomas, a despeito de serem diversos de personagens e de histórias. Até mesmo seus títulos, Família e Burguesia, seriam satisfatoriamente intercambiáveis, como sugere o crítico Giovanni Bogliolo, além do que, Burguesia poderia muito bem intitular o conjunto.
No primeiro e mais longo dos contos, que repete o título do livro, Natalia segue a linha da short story americana. Nessa estrutura, como se sabe, a narrativa começa num ponto presente ou futuro da ordem cronológica para depois voltar ao passado e contar a história que virá a desaguar naquela cena extemporânea (in media res, no jargão dos iniciados). Fora a desejada quebra na cronologia, a narrativa segue depois uma presumida linearidade. O cinema não raro se vale dessa mesma fórmula.
Numa tarde em Roma, um homem de 40 anos, chamado Carmine, vai ao cinema com uma mulher de 37, Ivana, e três crianças. Carmine e Ivana foram amantes no passado, as vidas seguiram rumos diferentes, ele se casou e teve um filho, ela, sem se casar, teve uma menina. Finda a sessão, num café ao ar livre bebem agora cerveja, enquanto as crianças tomam sorvete. O que existe por trás da cena e o que decorre dela compõe a trama. O antes e o depois compreendem um considerável período de tempo, bem como o aparecimento de vários outros personagens, o que poderia justificar a classificação do texto como novela. Permanece, entretanto, a unicidade de conflito: várias histórias secundárias se armam ao longo das 70 e poucas páginas (que demandam a um leitor atento mais do que as célebres duas horas), mas a motivação principal está toda ela contida na cena do café.
Natalia Ginzburg é essencialmente descritiva e muito meticulosa nesse exercício. Ela desenha os personagens com tal sutileza de detalhes — dando ênfase aos que realmente importam para a trama — que o leitor imediatamente consegue compreender seu caráter na profundidade e na perspectiva exata que a autora quer que ele imagine. A linguagem é despojada, sem rebusques, flui com naturalidade, mas precisa, às vezes cortante. A frase, sempre muito curta, economiza nos adjetivos para privilegiar a objetividade e o ritmo ágil das ações. O despudor que leva Natalia a se valer de uma linguagem quase modesta na composição de uma obra da maturidade criativa faz lembrar a máxima proferida pelo compositor alemão Arnold Schoenberg, criador do método dodecafônico, que, perguntado uma vez se na sua criação estaria o futuro da música, respondeu simplesmente que havia muita coisa ainda a ser escrita em Dó maior. Insistindo um pouco mais nas analogias musicais, o registro de Família é agudo, não dramático como o do soprano das tragédias operísticas, mas viril como o de um tenor à la Rossini. Aliás, Natalia passa ao largo daquilo que se convencionou chamar de “literatura feminina”; nela, de feminina, indubitavelmente só resta a autoria.
Gesare Garboli discorda desta última afirmação, ao definir a essência do estilo da conterrânea de uma forma tão precisa quanto inspirada: “só as mulheres”, diz ele, “possuem hoje o dom da criatividade ‘por subtração’, isto é, a capacidade de produzir uma obra subtraindo-a ao bloco estilístico que coincide com o tronco inteiro do próprio ser. A capacidade, entendamo-nos, de encontrar a estátua que já está no mármore. É essa a criação em primeiro grau, sem necessidade de acrescentar à realidade os significados”. Em outras palavras, as situações absolutamente cotidianas geradas pela interação de seres comuns e que se agitam como se não tivessem vida ou vontade próprias, movidos por um sopro contingente, formam uma história que só a autora consegue ver e trazer à tona, perdida, a outros olhos, num emaranhado banal e desgracioso. O subtexto é tão sutil que o leitor só o percebe em toda a sua amplitude ao terminar a leitura, ou seja, o desejado final surpreendente não chega a golpear o estômago do leitor, pois vem surgindo aos poucos, na sobreposição de vários elementos. Numa direção oposta (ou talvez análoga) à definição de Garboli, poder-se-ia imaginar a técnica narrativa de Natalia como um quadro impressionista: visto de perto, só se percebe o pontilhado confuso e sem significado; à medida que nos afastamos dele, ampliando assim o campo de visão, a cena vai ganhando textura e forma. Os detalhes parecem desimportantes, mas acabarão compondo um todo íntegro e muito bem urdido. Literário, enfim. Giovani Raboni também nos ajuda nessa direção: “o fio metafórico estendido através do conto é escondido, ou tornado perceptível somente como uma filigrana, por um acúmulo de materiais aparentemente estranhos e irrelevantes, de frases e gestos apressados, gratuitos, distraídos, em suma, por aquela modesta e desesperada música da mundanidade e da conversação”.
Burguesia, assim como Família, começa de forma despretensiosa: “a uma mulher que jamais tivera animais, um dia deram um gato”. Esse preâmbulo, apesar de sua singeleza, aponta para ricas possibilidades de desenvolvimento. A história familiar de Ilaria, cuja trajetória muda consideravelmente quando encontra o mundo dos aficionados por animais de estimação, repete-se de maneira alegórica na história dos gatos siameses — em nada parecidos com o modelo tigrado da capa do volume — que passaram a fazer parte de sua vida. A descoberta desse afeto novo e inusitado completa-se na dor da perda:
“‘Até os gatos morrem’, sibilava insensatamente uma voz dentro de sua cabeça. Ela achava estranho que daquelas bandejas e tigelas emanasse tanta dor, porque em sua infância tinham-lhe ensinado que os animais não eram nada, o sentido deles em nossa vida é nulo, não se sofre por causa de animais. Isso era o que lhe haviam ensinado. Mas a fisionomia secreta daquele gatinho se desenhava dolorosamente dentro dela. Ele tinha largas orelhas marrons e uma cara marrom, pontuda e triangular, esperta, viva e séria, uma das caras mais vivas e mais sérias que ela já vira. Naquela seriedade, porém, estava escondida toda a alegria do mundo.”
Pela própria natureza de sua concepção, Burguesia tem o tom emocional um pouco mais alto, sem, contudo, resvalar para a pieguice. Ao contrário, seguindo à risca seu ideal estético, Natalia Ginzburg pinta os afetos com cores básicas, cruas, cruéis às vezes, como quando ironiza o sentimento dos retratados. E é interessante perceber que, assim como a instituição “família” e o estrato “burguesia”, Carmine e Ilaria são personagens à beira da morte, sem, no entanto, conhecerem seu destino, situação que acaba construindo a grande metáfora da obra.
Família constitui um belo texto, tratado com dignidade numa edição correta, mas não menos caprichada e que — cruzem-se os dedos — recomendará também que se traga à luz outros trabalhos dessa escritora de rara sagacidade e competência literária.