Fábulas desiguais

Narrativas de Darcy Azambuja tentam recriar o gaúcho ideal, figura mítica do pam
Ilustração: Tereza Yamashita
03/12/2014

Lançado em 1925, No galpão — contos gauchescos, de Darcy Azambuja, recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de melhor livro de contos. A honraria, certamente, era mais valiosa naquele tempo, quando a instituição ainda não se submetia a vexames como o de contemplar o jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho com a Medalha Machado de Assis.

Mas deixemos de lado o populismo rasteiro — perdoem-me o pleonasmo — que contamina o Brasil nos últimos anos.

As narrativas de Darcy Azambuja tentam recriar, na linha inaugurada por Simões Lopes Neto, o gaúcho ideal, figura mítica do pampa. Não devemos, entretanto, buscar nelas o conto na sua estrutura moderna, mas o texto que se aproxima da crônica, dos causos, das fabulações relatadas ao pé do fogo.

Ética pampiana
Tratam-se, portanto, de narrativas marcadas por extrema simplicidade, quase sempre revelando a pretensão não de construir elaborados enredos, mas, sim, expor uma lição de ordem moral.

É o caso de Contrabando, no qual o gaúcho que faz parte da tropa responsável pelo comércio ilícito se transforma em herói. Numa ética duvidosa, a mácula do ato ilegal é superada pelo comportamento que encara a morte com frieza, consequência inevitável, inclusive, da lealdade.

Descobre-se a mesma lacuna ética em Brinquedo pesado e Juca da Conceição. Na primeira, Zé Venâncio, dono de uma pequena propriedade rural, acossado pelos vizinhos, grandes estancieiros, e por carreteiros que sequer pedem licença para usar seu rancho como pousada, escolhe não o enfrentamento direto dos problemas, mas a vingança oblíqua — que a narrativa chama de “brincadeira”. O resultado trágico deixa cego um personagem e não acarreta punições ao protagonista.

Na segunda, o narrador mostra-se mais hábil: sem condenar o lucrativo comércio que um gaúcho desenvolve em torno de certa imagem milagrosa, não se omite e faz crítica irônica, divertida, apresentando o paralelo entre o sucessivo aumento do negócio e a perpetuação de cultos e festividades cada vez mais complexos. A fala que encerra a narrativa, simples, dirigida à imagem, denuncia a relação comercial: “Cumo quera, tou com vontade de não fazê mais festa. Este ano não deu nem pra roupa das criança…”.

Outra questão de ordem ética é apresentada em Por pena: durante a fuga, após uma das sangrentas batalhas da Revolução Federalista — episódio, aliás, pouco estudado e raramente utilizado em nossa ficção —, dois irmãos, perseguidos por tropas governistas, veem-se num dilema: um deles, ferido, não pode prosseguir na fuga e pede para ser morto. No final, “o Quirino, já meio transtornado, agarrou a faca. E foi o outro que estendeu o pescoço, e foi a mão do outro que apertou a dele que tremia… O sangue esguichou na mão do que matava de pena”. O drama da decisão é ampliado pelas repetições e justificativas do narrador, que insiste em dizer: “Vocês entendem, não é? E que havia ele de fazer?”.

O heroísmo clássico ressurge nos dois textos finais.

O personagem repleto de bravura, na narrativa Emboscada, é um guaipeca, um cão vira-lata. Perdido em seus pensamentos, “lembrando vagamente corridas de tatus, arremetidas em guaraxains manhosos, […], madrugadas de rodeios, dias trabalhosos e quentes de marcação, sestas longas à sombra da figueira”, o animal se antecipa ao dono na estrada. Súbito, fareja algo e, rápido, denuncia a tocaia, enfrenta o criminoso. No fim, mortalmente ferido, é carregado pelo vaqueiro:

Agarrando-o, pelo calor do sangue, o dono achou a ferida, na paleta. Montou com ele ao colo e deu rédea no picaço. O guaipeca ia quietinho, nem gemia, e o sangue dele corria, lento e quente, pelos dedos que o acariciavam.

Em Passo brabo, o heroísmo é duplo: do campeiro, o negro Ranulfo, e do cavalo, um “tostado”. A história é contada no galpão da estância, enquanto “a lenha da aroeira crepitava no fogão raso e as chamas espancavam o frio e a meia-escuridão do recinto, fazendo chiar a chaleira de ferro batido”. O narrador, Laureano, hábil em fazer arreios, trança um apero quando entra no galpão “o sujeito do caso”:

Era um negro desempenado; no rosto baço os olhos pareciam saltados, o que lhe dava um ar de audácia e de astúcia. Vestia um poncho grosso, com a parte da frente atirada sobre o ombro direito, deixando ver o cinto de grandes fivelas de prata; nas botas rossilhonas, chinelas grandes, choradeiras.

No passado, incumbido pelo patrão de buscar, com urgência e a qualquer custo, um médico na cidade, ao retornar enfrentara a correnteza do rio, avolumado pela tempestade: “A água, bufando e cor de sangue. Assim nas voltas, vinha cada gorgolejão roncando que dava medo. Barranca, então, não se via. Tudo coberto”. Carregando o médico covarde, “um mocinho magro, de falinha chiada”, tem de vencer a natureza, o que só consegue graças ao cavalo:

Com o companheiro montado no tostado, o Ranulfo começou a nadar do lado de baixo, falando no ouvido do cavalo. O tostado, parece que entendia. Meteu os encontros na correnteza, forcejando, bufando, e devagarzinho, devagarzinho — estavam bem no meio do arroio! — foi aguentando a água que vinha grossa e roncando. Às vezes parecia que não tinha mais força, que ia ser arrastado; descaía umas braças e ficava só a cabeça de fora; mas o negro falava-lhe ao ouvido e ele estendia mais o pescoço, alinhava e vinha apartando as maretas, ressolhando forte… Les digo! naquela hora eu senti honra de ter nascido na mesma terra que aquele cavalo! Bicho de alma grande! Nem sei o que era mais bonito de ver: se aquele cavalo ou aquele homem brigando ali, juntos, com a água […].

Superada a aventura, o desfecho resume, de forma lírica, a relação de interdependência que se estabelece, no pampa, entre homem e animal:

Fui direito à estrebaria e vi-o com uma escova e um pano enxugando o tostado. E com um jeito que parecia cuidar de uma criança. Passava o pano pelo lombo, pelas pernas, pelo pescoço, e depois esfregava a escova, devagarzinho, muito tempo… E falava, dizia cousas no ouvido do cavalo, animando-o com as mãos, dando palmadinhas. Depois abraçou-o pelo pescoço e encostou a cabeça na dele… E falava sempre. Falava aquela língua que a gente, que vive com esses bichos tão bons, aprende a falar.

Humor e coloquialismo
Algumas histórias são banais ou previsíveis, como Charla e Dia de Chuva. Outras — caso de Lagoa morta —, inconvincentes. A que resume as qualidades de Azambuja é Fazendo aramado, na qual dois amigos, João Silvano e Jango Touro, enfrentam certa noite, bêbados, uma fantasmagoria:

La fresca! A coisa espantava mesmo! Me pareceu até que o chuvisqueiro frio tinha-me bandeado o poncho, nas costas… E nós mal com os matungos, que não queriam ir adiante e tremiam pelo corpo todo. O Jango juntou o malacara nas esporas, praguejando, já de pistola na mão, e ameaçava o assombramento — que viesse no mais, caramba! O malacara chegava a ficar nas patas e se atirava pra cima dos barrancos da estrada. Vi a coisa mal aparada. De medo, não! E bem podíamos ter atinado o que era aquele clarão; mas, a canha com bíter, a noite escura, e sexta-feira… Nisto o Jango me convidou: — “Vamos no mais índio velho!”. E a relho e espora chegamos até o meio do repecho. Meu amigo!… aí no mais estrondou de novo o banzé do outro lado, o clarão bateu no céu, e veio aquilo como uma tropa estourando, venceu o topo do cerro e desceu para o nosso lado que até parecia o cerro mesmo que vinha abaixo!…

No fim, trata-se apenas de um automóvel, mas a cena torna-se ainda mais hilariante quando, com os faróis postos sobre os cavaleiros, a buzina “berra como uma vaca sangrada”. Azambuja reúne coloquialismo e dialeto gaúcho, acrescentando ambiente perfeito, além da descrição desenvolta, como nesta cena em que se prepara o churrasco e podemos ver os pormenores, os gestos:

[…] E começou a preparar o churrasco. Do saco branco pendurado a um galho da capororoca, tirou a manta de carne. Era gorda, e de novilho. Furou-a com a faca em três lugares e enfiou o espeto; como o centro da manta fosse largo, estaqueou-a com um pauzito. Bateu os tições para juntar as brasas, fincou uma forquilha no chão, apoiou nela o espeto e começou a assar a carne.

Vendo que ia ter começo o “rancho”, os dois peães vieram-se chegando e começaram a matear, enganando o estômago. Mate não ocupa lugar.

Assar um churrasco, era coisa em que João Silvano se esmerava. Podiam os companheiros estar verdes de fome; ele não se apressava. Tinha orgulho de ser bom assador.

E pitando e chupando mate, sentado quase em cima do fogo, virava devagarzinho o espeto.

A carne coloreou-se, enrugou, e depois fez-se ouvir um leve crepitar. Das bordas escorriam lentamente pingos de graxa sobre as brasas, levantando fumo e espalhando odor forte. Aí, João Silvano retirou a carne do fogo, deu-lhe pequenos talhos, esborrifou salmoura com um molhinho de carqueja e pô-lo de novo a assar. A todas essas, conversando sempre. Quando julgou pronto o assado, fincou o espeto no capim, cheirando a faca, e:

— “Cheguem-se, moçada, que isto é churrasco e algo mais”.

E cortaram nacos de carne, que mastigaram com a fome de uma larga manhã de trabalho, deixando escorrer, às vezes, pela comissura dos lábios, gotas de gordura sangrenta. […]

Este e outros trechos mostram como a narrativa regionalista, ainda que presa à cena local, pode estar carregada de universalidade. Mas não só. Também comprovam que é sempre preferível utilizar uma linguagem simples, a mais difícil de ser dominada pelo escritor; a linguagem que superou a espontaneidade infantil — que Vladimir Nabokov chama de “o tagarelar do cronista” — sem se apegar à retórica e à artificialidade esteticista. O estilo amaneirado, tão comum nos dias de hoje, por meio do qual o autor prefere atrair atenção para a linguagem e não para sua história, serve, quase sempre, apenas para entediar os leitores.

Descrição
Não é sempre, contudo, que Darcy Azambuja alcança bons resultados. Superior, em todos os aspectos, a seu conterrâneo Alcides Maya — de quem analisei Alma bárbara, no Rascunho de novembro de 2013 —, às vezes resvala para soluções fáceis. Um exemplo é Querência, em que o excesso de descrições petrifica a narrativa; ao mesmo tempo, ideias e vocábulos repetidos — o narrador, em poucas páginas, reitera, de forma desnecessária, a alegria e o sorriso dos personagens — transformam a leitura num exercício enfadonho.

Livro desigual, portanto. Mas que, quando menos esperamos, pode nos oferecer trechos como este, no qual a sucessão de frases breves recria a lentidão — e notem a perfeita analogia entre o número de ideias do carreteiro e os poucos raios da roda:

Vida dura… vida triste… Mas o verão volta. E nem chuva nem sol apura o passo à boiada. Porque no mundo parece que só o carreteiro nunca tem pressa. Tudo, para ele, não precisa ir mais ligeiro que a carreta. Toda a sua vida repousa em hábitos que se afeiçoaram ao passo lento dos bois. No matungo lerdo, ao lado da carreta preguiçosa, o carreteiro é por força vagaroso, tanto no gesto como na ideia. Destas não as tem mais que raios tem a roda, e, como eles, giram devagarzinho em torno de um eixo invisível, custam a vir e quando vêm, perdem-se na voz grossa e lenta e abortam no gesto relaxado. Em cada “baio” que fecha gasta meia hora larga, descansada como as meias-léguas que a carreta faz.

Trecho que nos obriga a lastimar a escolha profissional de Darcy Azambuja — ele empobreceu nossa literatura ao preferir o jornalismo, a política, o magistério e o direito.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Peregrino Júnior e Puçanga.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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