A rigor, o que é um romance? A expressão se estende tanto que, na prática, toda e qualquer escrita nele se tutela. Parafraseando o Mário de Andrade do “conto é tudo aquilo que chamamos de conto”, romance é tudo aquilo que chamamos de romance, enfim. Cabe em suas quatro linhas, sobretudo depois de todas as coisas da pós-modernidade, da narrativa feita em língua românica ao folheto de cordel, ou mesmo o texto de gênero anárquico de Pedro Maciel. Assim como o seu A hora dos náufragos, Como deixei de ser Deus é um livro marcado pelo arbítrio do autor. Não há um compromisso formal em narrar um fato, um enredo, mas somente em alinhar frases, aforismos aparentemente desconexos. Fato, no entanto, é que justamente aí começa a desencadear a lógica deste, vamos lá, romance.
Friedrich Nietzsche, o filósofo, um ano antes de perder a lucidez, em 1888, fez todo um arrazoado sobre a impossibilidade de Deus. Trilha pela assertiva de que foi o homem quem criou Deus, embora dele tenha se tornado escravo, ou até por isso mesmo, para se escravizar, tenha o homem criado seu Deus. Neste texto profundamente iconoclasta e essencial, O Anticristo, Nietzsche estabelece a base de seu pensamento de descrença. “O homem é um final”, e se o homem em si é um final não tem mais para onde ir finda sua passagem na terra. Ou seja, qual o sentido da dedicação religiosa se ela em si não traz qualquer esperança, se o conceito cristão de céu e inferno é um vazio?
É melhor pensar nas coisas da terra, ensina Nietzsche e aprende Pedro Maciel, de uma maneira mais humorada e leve. Mesmo formado por aforismos Como deixei de ser Deus renuncia a qualquer senso doutrinário ou filosófico. É uma ampla reflexão, e assim se basta, indiferente se é poesia, prosa, romance, conto, novela ou seja lá o que for. O gênero aqui já não importa e mesmo se os conceituadores de tudo insistirem na tecla podemos pensar em literatura somente. Em outras palavras, o livro é uma fósmea, é um texto literário e isso basta.
A fósmea
Como deixei de ser Deus encanta por sua linguagem direta e bem-humorada. Pedro parece se divertir, e diverte o leitor, ao subverter os dogmas religiosos que há milênios atormentam o homem. E, retomando o conceito de discípulo de Nietzsche, reafirma em Deus a condição de criatura do homem. “Mitos me entediam; você me entende? O Diabo é uma versão de Deus; Deus é um verso do Diabo”, escreve no aforismo 18.
Aliás, esta numeração não se fecha numa lógica. Pedro enumera cada uma de suas frases numa seqüência aparentemente aleatória, o que só confirma sua falta de certezas. Entre os números 21 e 25, por exemplo, existe um espaço, e ele, o espaço, vai se sucedendo de maneira ilógica. O que havia no lugar dos espaços? Frases simplesmente suprimidas do texto? Parece que não, afinal Pedro não trabalha com facilidades. Os espaços seriam para o próprio leitor “escrever” também seu texto? Parece não ser esta uma hipótese válida. Pedro não trabalha com banalidades. Talvez seja tudo mais uma brincadeira, um exercício lúdico, ou, caindo no campo da metáfora, a impossibilidade de se ter um raciocínio cartesiano em torno de Deus.
Esquecendo a lógica matemática e voltando ao princípio, à ausência de um enredo, uma pescaria mais atenta revela que o narrador progressivamente vai se livrando do mito Deus. Ele começa negando sua condição humana, ou pelo menos de terráqueo. “3 O pensamento é o espírito do tempo. Quem você pensa que é? — Paisagens, isto é, ninguém.” Filosoficamente desdiz o próprio tempo. “11 ‘Tempo’ é a história da imagem e a memória da paisagem. A memória sempre inventa esquecimentos.” E súbito chega a Deus por vertentes filosóficas para logo depois começar seu processo de negação. “20 Xenócrates diz que há oito deuses: os cinco nomeados entre os planetas, o sexto composto de todas as estrelas fixas como sendo seus membros, o sétimo e o oitavo o sol e a lua. Diógenes de Apolônia diz que Deus é o tempo.” “21 (…): não me importo com as coisas perdidas mas com o tempo perdido. O vento nunca devolveu o meu tempo.” E segue seu duelo com o Deus que não pode ser eterno pois sua matéria — tempo, fé — é toda perecível. “32 Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor Deus: aquele que é e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso. Se Deus existisse todo mundo ficaria sabendo.” “66 (…): um dia ele vai atentar contra o tempo. O tempo é uma fábula do pensamento.” E arremata, finalmente: “2041 Não dê ouvidos aos adivinhos. (…) não há um mundo a descobrir.” “2046 O mundo já está descoberto; esse mundo parece-me não ser meu mundo.”
Sem angústia
O enredo da descrença, enfim, de um homem que se apóia nos filósofos fundadores da civilização cristã e ocidental para descobrir que Deus simplesmente não existe. Não há angústia nesta busca, pois desde o início o narrador sabe o ponto exato de sua chegada. A inexorável falência de todas as civilizações. Cercado pelas condições e as leis da natureza, o homem a desrespeita com um senso suicida. E aí os simplórios logo pensarão num romance catástrofe, daqueles que fazem a fortuna dos inventores de efeitos especiais no cinema. Pedro vai além. Para ele não estão em jogo apenas as condições climáticas, mas a condição humana da civilização. O mundo, mesmo degradado, pode seguir sendo mundo. Já as civilizações, por serem temporárias, cairão no esquecimento. É o curso natural e previsível de tudo, o esquecimento.
Ao apontar o possível esquecimento de tudo, Pedro Maciel, paradoxalmente, apenas se diverte com as possibilidades do pensamento. Não há qualquer sentido profético em seu texto. Tudo aqui passa por um exercício lúdico. Literatura para ele é jogo de palavras, brincadeira de possibilidades. Nela é possível apontar para as contradições do pensamento, da evolução das crenças humanas despido da formalidade acadêmica, da formalidade filosófica. Pedro quer ser feliz fazendo seu leitor buscar novos questionamentos, e isso lhe basta.
Quanto à velha questão classificatória, há uma que não pode ser esquecida. A trajetória meio clandestina do narrador revela o homem diante de suas dúvidas. No caminho de tantas perguntas, surgem certezas e definições. Enfim, mesmo fugindo outra vez do convencional, Pedro Maciel escreve um romance de formação na melhor tradução que a expressão possa ter.
Como deixei de ser Deus já no título anuncia a condição de criatura de Deus e a dependência que tem dos homens. Deixá-lo no esquecimento foi somente uma opção literária do narrador. E uma opção bem fundamentada e escrita. Ou seja, uma literatura de fato.