Autores de literatura, assim como outros artistas, dialogam com seus congêneres. Esse diálogo pode ocorrer com autores de sua época ou de períodos anteriores. Nas artes plásticas, Michelangelo e Leonardo da Vinci exemplificam essa interação. Michelangelo buscou na antiguidade clássica, especificamente na estatuária grega anterior a Cristo, formas de contestar e contextualizar as artes plásticas da época dele. Seu David não é meramente o personagem bíblico, mas um herói grego com a face serena de quem não apenas luta, mas também sente prazer pela vida. Leonardo da Vinci, com sua Gioconda, traz para a pintura a importância do ser humano do seu século, deixando de lado a preocupação religiosa. Na literatura, podemos observar em Montaigne um diálogo contínuo entre o pai do ensaio moderno e seus antecessores da Grécia clássica. Avançando alguns séculos, podemos citar Cortázar e seu Jogo da amarelinha, que desafia as convenções narrativas; outro livro que vem na mesma trilha é Zero, de Ignácio de Loyola Brandão.
Piñata, de André Volpato, insere-se nesse contexto de diálogo cultural, mas de maneira distinta. Não se trata de uma obra que busca o mesmo reconhecimento que os clássicos mencionados, mas oferece uma reflexão pertinente sobre a sociedade contemporânea. No prólogo, Volpato escreve:
Mais urgente do que essa ladainha pequeno-burguesa, tomara que até o fim a gente consiga pensar em alguma coisa mais urgente do que essa ladainha pequeno-burguesa. Depois de tanto tempo, fica difícil, mas quem é que sabe, né? Talvez até o fim a gente consiga, afinal, cruz e credo, esse é só o começo, nasceu na cidade uma criança-bomba.
O que significa piñata, no entanto? Trata-se de um objeto oco que tem o formato de uma estatueta ou de um objeto qualquer; é preenchido com doces ou brinquedos e fica suspenso no ar por um barbante. Crianças se revezam, armados com um pedaço de pau, e tentam quebrar a piñata para recuperar o que ela contém. Ela pode ser feita de materiais como tijolo, papel machê ou argila. A piñata que conhecemos hoje vem do México e é tradicionalmente feita em formato humano ou animal.
Cultura pop
O romance de Volpato também se apresenta como um jogo: isto é, joga com a possibilidade do apocalipse e com a violência contemporânea, incluindo redes sociais, hackers, deep web e justiceiros digitais. Piñata dialoga com a cultura pop, com as histórias em quadrinhos que tratam do tema e com os jogos digitais. O nascimento e crescimento do menino-bomba, que ameaça explodir a qualquer momento, flerta com a possibilidade da destruição total, um tema que fascina alguns. No livro, esse nascimento é real, instigando a medicina a pesquisar por uma cura, tratando o fenômeno como uma doença rara, com uma personagem chamada Dra. Frankenstein.
O diálogo com o terrorismo é presente e ameaçador, refletindo uma das grandes preocupações do mundo contemporâneo, onde a vigilância constante é necessária devido à presença de terroristas em potencial. Aqui, observa-se uma espécie de paranoia e uma viagem em círculos que adentra a psicose.
O nascimento do menino-bomba cria uma analogia interessante com a figura do menino-messias, destinado a salvar o mundo. O menino-bomba, no entanto, representa uma religião às avessas, alguém que veio para destruir. Uma possível reflexão é que o menino-messias, até hoje, não conseguiu unir e harmonizar os seres humanos; talvez, diante da ameaça de destruição iminente, capaz de ser provocada pelo menino-bomba, possamos ser dissuadidos de nos explodir em tantas guerras.
Volpato desenvolve sua obra em duas versões, nomeadas pelo próprio autor como versão 1 e versão A, permitindo que o leitor escolha como deseja ler o livro. A linguagem do romance rompe, inúmeras vezes, com a variedade culta, e a narrativa em círculos nos remete novamente ao texto inicial: “mais urgente do que essa ladainha pequeno-burguesa, tomara que até o fim a gente consiga pensar em alguma coisa mais urgente do que essa ladainha pequeno-burguesa”.
O romance reflete o nosso mundo dominado pelo jogo e pelas apostas, nos faz refletir sobre as diversas vias que podem nos levar ao mesmo destino: a aposta na destruição. Caso a obra seja vista com seriedade, trata-se de um livro difícil, que precisa ser analisado minuciosamente a cada capítulo, cujo início aparece sempre com letras brancas em retângulos pretos, entendendo a escritura como um rompimento com a lógica do ensaio, este sempre pronto a explicar. No caso de Volpato, o texto é a bomba, sempre ameaçadora; talvez ela jamais exploda, mesmo assim pode causar muitos danos.
Se lido de modo mais leve, como alguém passeando pelo universo dos quadrinhos com seus heróis e vilões, muitas vezes domados e outras vezes fora de controle, o livro pode ser visto como uma representação da falta de sentido da vida, especialmente se buscamos respostas concretas para a existência. Volpato nos desafia a aceitar a incerteza e a complexidade da vida moderna, utilizando sua narrativa para nos provocar e nos fazer pensar sobre o mundo em que vivemos.
Com essas reflexões, Piñata se torna uma obra relevante, convidando o leitor a participar de um jogo complexo e fascinante, onde a ameaça da explosão é constante, mas a verdadeira explosão pode ser a compreensão profunda da condição humana e suas contradições.