Encontrar os pontos de contato entre os escritores Joca Reiners Terron, Ademir Assunção e Ronaldo Bressane não é difícil. Terron é editor da Ciência do Acidente, que lançou O impostor, de Bressane, em 2003. Ademir Assunção é um dos editores da revista londrinense Coyote, que já publicou contos tanto de Bressane quanto de Terron. Assunção publica pela Ateliê Editorial, editora que lançou a revista PS:SP (com textos de Bressane). Como se não bastasse, os três foram selecionados por Nelson de Oliveira para compor a antologia Geração 90: os transgressores (Boitempo), publicada no ano passado no intuito de reunir os nomes que despontam na chamada nova literatura brasileira.
Esse conjunto de informações editoriais serve para dar ao menos uma certeza: Terron, Assunção e Bressane fazem parte de um mesmo grupo de pessoas que, além de inter-relacionar-se, tem por hábito a estranha mania de escrever livros.
O simples fato de um grupo de autores estar produzindo literatura num mesmo momento talvez fosse o requisito mínimo para se poder ter o esboço de uma geração. Há, no entanto, quem não se contente somente com isso e chegue a desacreditar o termo “geração”, como na polêmica criada pela entrevista de Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Marçal Aquino e Luiz Rufatto à Folha de S. Paulo durante a última Festa Literária Internacional de Paraty, em que o primeiro — recentemente laureado com o Prêmio Portugal Telecom de literatura brasileira — disse, em outras palavras, estar ainda “à espera” do que seria a obra dos novos escritores.
Polêmicas à parte, o fato é que os nomes da tal nova geração continuam produzindo. E produzindo bastante, sem parecer se importar com a aprovação ou a falta dela por parte de alguns colegas de ofício. Exemplo disso são os novos livros dos três autores supracitados: Curva de rio sujo, de Joca Reiners Terron; Adorável criatura Frankenstein, de Ademir Assunção; e Céu de Lúcifer, de Ronaldo Bressane. Livros novos de autores novos da geração nova. Ainda que nenhum deles esteja iniciando no negócio, pelo contrário.
Todos com mais de 30 anos, Terron, Assunção e Bressane já debutaram na literatura algumas obras atrás. Os três também não hesitam em enveredar pela poesia quando necessário. Mas o traço mais comum entre ambos é outro: o experimentalismo. Como anunciava Nelson de Oliveira ao trazer Os transgressores do prelo, os transgressores transgridem mesmo é na linguagem.
Sobre experimentação, um velho amigo dizia: “vá experimentar em casa e só me mostre quando estiver pronto”. Exagero, é claro. Toda evolução, afinal, só ocorre à medida que se percorre um caminho. Nesse ponto, sábio é o conselho de José Castello, que diz que nunca é bom se ler autores novos esperando uma obra-prima. Mesmo Drummond e Rosa, lembra o escritor, patinaram no começo.
Terron, Assunção e Bressane não têm, definitivamente, medo de errar. Abusam das experimentações lingüísticas e esse é o elemento que se sobressai em sua obra, mesmo quando o objetivo final parece ser outro. O aviso ao leitor, no entanto, é vital: quem não está preparado para o estranhamento, que tome outro rumo. Dito isto, vejamos alguns pontos em particular de cada um dos referidos autores.
Escavador da memória
Joca Reiners Terron assumiu, recentemente, sua compulsão pela escrita. Ele, que vinha mantendo havia algum tempo a atividade de editor e de designer gráfico, parece ter deixado de lado tais ocupações em nome de todo o vasto universo literário que vem criando nos últimos anos. De sua produção, destacam-se a novela Não há nada lá (Ciência do Acidente), de 2002, e Hotel Hell (Livros do Mal), de 2003, este último coletânea confessa de posts publicados em weblog homônimo.
Curva de rio sujo, no entanto, parece ser seu grande momento, até agora, como prosador. Tendo deixado a poesia meio escanteada, Terron abraçou a prosa em todos seus encantos. Curva… é uma coletânea de contos escritos em tom memorialístico, baseados em histórias extraídas do rico manancial que é o folclore mato-grossense, estado de nascença do autor. Curva de rio sujo, como diz o ditado, só guarda tranqueira, e é na espécie de bilhete-prólogo do início do livro que se concentra a tônica da obra que se seguirá: “Escrevo para esquecer”, escreve Terron. “Esquecer é uma função da memória tão importante quanto recordar”, completa. As frases dão o tom: os contos de Curva de rio sujo são a prova viva de uma memória extirpada da mente do autor. Memória que se confunde com sonho, realidade e loucura. Memória que mistura personagens de clássicos infanto-juvenis com acepipes de uma infância vivida na segunda metade do século 20. Ficção é, em boa parte, memória. E Terron parece se dar bastante bem ao escavar esse largo buraco.
Propositadamente ou não, Terron é, dos três autores em questão, o que menos subverte a linguagem (ao menos neste Curva…). O salto é grande se comparado a Hotel Hell e aos contos de Os transgressores. Não é possível afirmar se uma coisa é decorrente da outra, mas com Terron tendo se voltado mais para o sentido do que escreve do que à forma como escreve, sua literatura ganhou em qualidade.
Há, no entanto, grande irregularidade na qualidade de seus contos. Enquanto uns abusam do lirismo e da riqueza na construção das imagens, outros são menos cuidados, merecedores, talvez, de atenção maior por parte do autor.
Troça da atualidade
Se a menção à figura de Frankenstein remete ao terror, muita piada também já se fez sobre ela. O uso que faz Ademir Assunção, no entanto, em Adorável criatura Frankenstein, é outro: o da figura retalhada, composta a partir de sobras dos outros. Tanto o protagonista, chamado Eu, como os demais personagens — Ela, Eles, A Editora de Entretenimento da Revista Veja — existem em um mundo que se assemelha a Terra, embora não possa ser tido cem por cento como a Terra. Afinal, em que mundo Pernalonga seria o apresentador de um talk show literário?
Como se pode perceber, Assunção utiliza imagens cômicas — artifício sempre perigoso, literariamente falando — para construir o universo deste seu romance. Unindo isto à evidente faceta social contida no texto, aí está um painel do que pode se chamar de “crítica à sociedade” atual: não temos identidade, ignoramos nossos confrades e vivemos à mercê do tempo, que nos destitui de nós mesmos. Nada além disso.
Rir da própria desgraça é sempre um bom remédio. O que falta à Adorável criatura Frankenstein de Ademir Assunção talvez seja a lição do velho Machado: um pouco de ironia não faz mal a ninguém.
Perdido no caos
Que papel representa o jornalista na dita Era da Informação? A questão filosófico-barata é um bom ponto de partida para Ronaldo Bressane, jornalista, percorrer em Céu de Lúcifer. Outra coletânea de contos, o livro inicia com o que poderia ser uma peça promissora: Jornal do Caos, o diário de um jornalista que abandona a redação e descreve suas experiências em meio a crises de abstinência de notícias. No conto, é interessante ver o modo como Bressane se apropria do cotidiano e jargões dos jornalistas para inverter o jogo, privando o profissional da comunicação daquilo que é matéria-prima para seu trabalho, a informação.
Apesar do bom início, entretanto, Bressane se perde no excesso de informações (contra-senso?) particulares de um grupo ao qual talvez ele próprio pertença nos contos seguintes. A sensação é a de que o livro foi escrito por um sujeito que passou a noite em uma rave se entupindo de drogas e resolveu fazer suas considerações — o que, novamente, Jornal do Caos anuncia: os outros contos parecem mesmo anotações caóticas — literárias. Bressane, por exemplo, faz uso constante da língua inglesa. O que poderia soar como uma forma de se manifestar a cultura universalista — especialmente a da juventude brasileira, que tanta coisa incorpora da americana —, sai como uma barafunda lingüística quase sem pé nem cabeça. O formato é especialmente esdrúxulo na segunda seção do livro, intitulada This Monkey Goes To Heaven (Esse macaco vai para o Céu), em que há um personagem principal, o macaco Butthole Kongo (criado por outro escritor novato, Jorge Cardoso), e uma sucessão de acontecimentos indefiníveis marcados por uma série de barras e pontos.
Validade
Talvez seja realmente cedo para se definir os parâmetros de como é e quais são os elementos que formam a tal nova geração da literatura brasileira. Talvez resenhas como essa não signifiquem rigorosamente nada em anos futuros, quando possivelmente o estudo que se fará sobre esses autores será muito mais valioso e aprofundado. Não é pecado, conquanto, discorrer sobre impressões que as obras desses novos autores — que, repita-se, não devem nada a ninguém sobre o que escrevem e como escrevem — causam ao leitor médio. E como experimentar parece estar mesmo na moda, também não custa dizer se o experimentado lhe apraz ou não.