Uma das maiores vozes femininas da literatura italiana do século 20. Uma presença marcante não só pelo discurso literário, mas pela sua atuação no cenário cultural e político italiano. Natalia Ginzburg marca profundamente com seu trabalho editorial a produção intelectual e literária da segunda metade do século passado. Os seus primeiros escritos saem, na década de 1930, na famosa revista Solaria, para a qual colaboraram tantos escritores. Um percurso de vida marcado pelo antifascismo, posicionamento político que já via no pai, Giuseppe Levi, e que depois irá compartilhar com o primeiro marido Leone Ginzburg, que, preso pelo regime fascista, morre, como tantos outros, no cárcere de Regina Coeli, em 1944. Uma geração marcada, como tantas outras na Europa e na América Latina, pelo signo da censura e de um estado de exceção, mas que na verdade era a regra geral, para lembrar as palavras de Walter Benjamin.
A narrativa de Natalia Ginzburg, apesar da sua singularidade, acompanha os movimentos tortuosos das manifestações artísticas do entre guerras e do crucial período posterior à década de 1940. Memórias, ensaios, uma prosa ou um texto teatral revigorantes, uma escritura nítida preocupada com as ações e gestos cotidianos. Num panorama pelos seus escritos, passa-se de um neo-realismo inicial, presente nos primeiros romances, para uma narração mais vigorosa, que aos poucos vai sendo aprendida e construída, fruto das experiências de mundo e daquelas vivenciadas em primeiro plano. Preocupações íntimas, mas também relacionadas à essência do ser humano, perfiladas pelo toque e sensibilidade do seu olhar e testemunho.
As leis raciais de 1938 fizeram com que Ginzburg, de origem judaica, não pudesse usar o seu nome na capa do primeiro romance, La strada che va in città. A proibição do uso do nome implica, certamente, uma “anulação” de todos os gestos realizados. Uma alienação da subjetividade que fica claro na passagem de Natalia Ginzburg para Alessandra Tornimparte, pseudônimo com o qual assina a publicação. Pegadas de um passado que não se apaga, pode estar adormecido, mas faz parte da memória.
Il figlio dell’uomo (O filho do homem), ensaio de 1946, é um título significativo para toda uma geração da qual ela faz parte, cujo tema é o sofrimento e a dor, não só física, mas também existencial. Nesse texto, ela afirma que quem foi um dia perseguido não encontrará nunca mais a paz e nem a tranqüilidade, já que um toque ou um som noturno é significado de “delegacia”. Geração e gerações formadas por Elio Vittorini — poderia aqui ser lembrado o título Homens e não, Cesare Pavese e Italo Calvino, escritores com os quais ela trabalhará na Einaudi. Em 1963, ganha um dos principais prêmio literários italianos, Lo Strega, com o livro Léxico familiar, traduzido em 2010 pela também Cosac Naify, um dos textos mais significativos da sua poética.
Movimento melancólico
Caro Michele, de 1973, publicado pela Cosac Naify, com tradução de Homero Freitas de Andrade, acompanhado de um pósfacio assinado por Vilma Arêas, é um livro composto por vários personagens que estão numa espécie de movimento melancólico contínuo. Indivíduos que fazem parte de uma sociedade marcada pelo sofrimento, pela errância, pela fragmentação, pela violência externa que corresponde a uma outra, interna. Personagens cujo devir é incerto.
Um romance composto por 42 capítulos, dos quais 37 são cartas, e nos cinco restantes percebe-se a presença discreta de um narrador e o uso das formas dialogais. Os personagens destas duras páginas fazem parte de uma rede de conhecimentos, amizade e família que se constrói ao longo da narrativa. Um ponto fulcral é, sem dúvida Michele, nome presente desde o título: Caro Michele, um refrão-início das várias cartas que o leitor irá encontrar. Michele, protagonista? Talvez, sim, por ser um elo de ligação, um ponto de fuga. Contudo, um protagonista ausente, cuja presença se faz a partir das cartas enviadas e recebidas.
O esfacelamento, a crise da família e os destinos dos personagens estão correlacionados a um período importante da história italiana. As cartas que compõem o corpo do romance são trocadas no arco de um ano. A primeira de Adriana, a mãe, para Michele, é datada de 2 de setembro de 1970, e a última, do amigo Osvaldo para a irmã de Michele, Angelica, tem a data de 9 de setembro de 1971. No final de 1970, no mês de dezembro, como se sabe pela história italiana, Valerio Borghese lidera uma tentativa de golpe de Estado. A reação antifascista une várias camadas da população, classe média, operários e intelectuais, que conseguem frear as ações do líder fascista. Mas, registra-se, nas eleições, um aumento significativo dos votos para os grupos de tendência fascista. Caro Michele é uma obra que também trata desse momento da Itália.
Desventuras e vidas desfaceladas, cuja memória faz-se como uma forma de sobrevivência do tempo presente, são perfiladas pelo realismo singular de Natalia Ginzburg, que enfatiza a incapacidade do viver junto. Percepções e sofrimentos individuais e fragmentados que se revelam, aos poucos, nessa espécie de romance epistolar, cujo fim é a trágica morte de Michele, que havia deixado a Itália, pelo que tudo indica por questões políticas, mas acaba sendo duramente atingido por um grupo fascista, na Bélgica.
Escrevo-lhe para dar uma notícia dolorosa. Meu irmão Michele morreu em Bruges, numa passeata de estudantes. Veio a polícia e os dispersou. Ele foi seguido por um grupo de fascistas e um deles deu-lhe uma facada. Parece que o conheciam. A rua estava deserta. Michele estava com um amigo, que foi telefonar para a Cruz Vermelha. Enquanto isso, Michele ficou sozinho na calçada. Era uma rua onde só havia armazéns e estavam fechados àquela hora, isto é, às dez da noite. Michele morreu no pronto-socorro do hospital às onze. O amigo dele telefonou para minha irmã Angelica. Minha irmã, o marido e Osvaldo Ventura foram a Bruges. Trouxeram-no para a Itália. Michele foi sepultado ontem em Roma, ao lado do nosso pai, falecido em dezembro passado, como deve se lembrar.
É a partir dessa carta, que o leitor tem conhecimento do dramático desfecho dos deslocamentos de Michele. Escrita pela outra irmã, Viola, a carta é endereçada a Mara, com quem parece que Michele teve um filho. O final dessa correspondência é um exemplo da teia de relações imbricadas que há no livro, entre os inúmeros personagens que vão e vêm. A história italiana acompanha o passado e o presente de todos eles.
Michele é um filho que abandona a família por motivos políticos, mas, na verdade, ele não sabe ao certo o motivo. Não comunica nada a mãe, que na correspondência que abre o romance afirma:
Perguntei-lhe se por acaso você não tinha se aproximado de grupetos políticos perigosos. Sempre morro de medo de que você possa acabar entre os Tupamaros. Ele (Osvaldo) disse não saber com que você andava nesses últimos tempos. Disse ser bem possível que você tivesse medo de alguma coisa. Não foi claro.
Aqui está um dos eixos centrais do livro. Esse mistério que faz com que Michele vá embora, uma fuga, na qual não deixa rastros nem vestígios. Dá início, então, a uma vida errática, deambulando por Londres, Sussex, Leeds e Bruges.
Michele, como os demais personagens, se deixa levar pelos caminhos obscuros e misteriosos da vida, numa existência quase órfã. No seu caso, em particular, esse estado órfão, aos poucos, nas cartas — escritas íntimas de confissão —, vai-se revelando quando Adriana assume a sua ausência como materna. Uma errância que está presente nas palavras que Michele escreve a irmã Angelica, quando já está em Leeds, 27 de março de 1971: “Quando à saudade vem misturar-se a repulsa, o que então acontece é que vemos situados a uma grande distância os lugares e as pessoas que amamos, e os caminhos para chegar até eles parecem-nos interrompidos e impraticáveis”.
Para o filósofo, dramaturgo e romancista francês, Alain Badiou, um dos traços distintivos do século 20 (título de seu livro) “foi procurar pensar a relação, muitas vezes obscura num primeiro momento, entre violência real e aparente semblante, entre rosto e máscara, entre nudez e travestimento”. Para ele, tal elemento pode ser identificado em vários âmbitos e registros da teoria política à prática artística.
Na produção literária de Natalia Ginzburg, a memória e as lembranças são dois aspectos centrais da sua poética. Recordar o que já é passado. Como coloca Walter Benjamin: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Caro Michele é, portanto, um romance epistolar da memória, no qual a lembrança do passado pode ser concebida como um espelho da solidão, do deixar-se viver, como no caso de Michele e de outros personagens, do vazio existencial da pequena e média burguesia. Esse vazio concretiza-se em um dos raros diálogos, um dos últimos em que aparece a voz de Adriana, a mãe de Michele: “A gente se acostuma com tudo quando não resta mais nada”. A última frase antes da última carta, um grito de desespero.