Reza a lenda que todo japonês deve subir o Monte Fuji uma vez na vida, ou não é um nipônico de verdade. Por conta disso, não é raro encontrar excursões da quarta idade perambulando pela montanha mais famosa do Japão durante o verão, quando o branco da neve é substituído pelo marrom das trilhas de terra. São grupos com mais de trinta idosos, alguns com quase oitenta anos, que não querem deixar este mundo sem cumprir a difícil escalada, que pode passar de dez horas, conforme o ritmo do montanhista. Da mesma forma, depara-se pelo caminho com várias crianças, algumas com não mais que dez anos de idade, literalmente arrastadas pelos pais Monte Fuji acima, num sacrifício em família. Reza também a lenda que só um tolo faz a escalada duas vezes, tamanha a sua dificuldade.
Parece história de mangá, mas é uma tradição secular que revela muito da característica do japonês, um povo em constante questionamento entre o ser, o viver e o não-viver. Enquanto alguns encaram o duro desafio da montanha sagrada para sentir-se um nipônico em essência, outros buscam este mesmo sentimento por meio da morte, mais precisamente pelo suicídio. Em 2002, pelo terceiro ano consecutivo o número de suicídios no Japão passou de 30 mil casos, a maior taxa entre países industrializados. Por coincidência, um dos lugares preferidos para os japoneses conduzirem a própria morte é o Monte Fuji, em cujas florestas foram encontrados, no ano passado, 78 corpos.
Em ambas situações tipicamente nipônicas, na escalada ou no suicídio, percebe-se uma angústia de dar inveja a qualquer filósofo existencialista, alemão-dinamarquês ou anglo-francês. O mesmo pode-se dizer do livro Uma questão pessoal, do japonês Kenzaburo Oe, prêmio Nobel em 1994. Lançada apenas agora no Brasil, a obra foi escrita em 1964, alguns meses depois que primeiro filho de Oe nasceu com uma anomalia cerebral.
Aliás, uma breve descrição da vida do autor é necessária antes de se falar em sua obra-prima. Até então, Kenzaburo Oe era um típico japonês do interior, nascido na pequena ilha de Shikoku. Ainda criança, empolgou-se com os clamores nacionalistas da Segunda Guerra e dizia-se pronto a morrer por seu país e por seu imperador. Quando a guerra acabou, o garoto ouviu Hirohito pelo rádio e descobriu que seu grande herói era um simples humano. Esta foi a primeira grande influência em seu futuro trabalho de escritor.
Aos 17 anos, Oe mudou-se para Tóquio para cursar a faculdade. Teve que reaprender a língua japonesa, contrastante com o dialeto de sua ilha. Em breve estava escrevendo novelas e contos premiados, recebendo o Akutagawa, maior prêmio de literatura do país. Em 1963, seu filho Hikari nasceu com hérnia cerebral, com poucas chances de sobreviver. Oe e sua esposa quase abandonaram a criança à morte, mas o escritor desistiu após uma visita a um hospital em Hiroshima que tratava de vítimas da bomba atômica. Comovido com o sofrimento daquelas pessoas, Oe decidiu que não poderia escolher o caminho mais fácil. A vida de Oe mudou e sua escrita também. Uma questão pessoal é um marco em sua obra e na literatura do Japão. Eu vou mais além e arrisco-me a identificar nela aspectos filosóficos com características existencialistas, a uma maneira nipônica.
A exemplo do autor, Bird, o protagonista, descobre que seu filho nasceu com uma anomalia cerebral. Bird é um mediano professor de inglês em um cursinho e tem rosto e jeito de pássaro, daí o apelido. Sua única aspiração na vida é conhecer a África. Seu único desafio, combater a queda pelo alcoolismo. (“Bird vinha evitando ir fundo na pesquisa das carências da própria vida, das raízes de sua insatisfação. Sabendo que elas existiam, porém, acautelava-se com a bebida.”).
Já nos capítulos iniciais Bird desperta a piedade do leitor. É confundido na rua com um homossexual. Leva uma surra de um grupo de jovens arruaceiros e recebe por telefone, friamente, a notícia que o filho nasceu doente. O texto de Oe é não apenas frio, mas extremamente duro, como quando Bird é recepcionado pelo médico no hospital: “Então, vamos ver a mercadoria. Vai assustar-se se estiver desprevenido. Até eu me assustei, quando ele saiu. Trata-se de uma hérnia cerebral. Ainda que abríssemos a caixa craniana e reintroduzíssemos nela a parte do cérebro que extravasou, a possibilidade seria apenas de uma vida vegetativa, e isso com muita sorte”.
Apesar de atrair a piedade do leitor para o protagonista, percebe-se que o autor não foi autopiedoso, tratando a questão sem qualquer tipo de melodrama. Bird depara-se então com a grande escolha de sua vida. De um lado, o desafio do Monte Fuji: deixa o bebê viver, impondo-se uma difícil escalada, ou livra-se do fardo e permite que o filho morra lentamente sem qualquer intervenção por sua sobrevivência. A princípio, é feita a segunda escolha, mas cuja espera deflagra a grave crise existencial do personagem.
Kierkegaard disse que cada um precisa escolher seu próprio caminho sem o auxílio de padrões universais. Nietzsche afirmou que o indivíduo precisa decidir que situações incluir como situações morais. Mas, independentemente da escola filosófica, o tema principal do existencialismo é a escolha, inerente apenas ao ser humano, que pode criar a sua própria natureza. Esse risco passa a ser o dilema de Bird, que medita sobre a infelicidade do bebê pelo ângulo que lhe era mais doloroso: a morte de um recém-nascido em estado vegetativo. (“Fosse destituída de sofrimento, o que seria essa morte para um ser com funções apenas vegetativas? E que dizer da vida? Broto de existência que desabrocha na vastidão de bilhões de anos da planície do nada, que evolui por nove meses. Para um bebê em estado vegetativo, a permanência neste mundo significa apenas algumas horas de tênue sofrimento sem nenhum sentido. Depois, um instante de parada respiratória para se tornar um grão de pó da planície infinita do nada.”)
Kenzaburo Oe, por meio de Bird, mostra-nos que os conceitos existencialistas são ainda mais simples, que algumas coisas são absurdas ou irracionais, sem explicação, e que poucas decisões não têm nenhuma conseqüência negativa. O difícil é tomar esta decisão, e levá-la até o fim. E é depois de tomar a decisão que a vida de Bird se transforma, pois luta consigo mesmo para mantê-la. O romance ganha fôlego. Bird volta a beber e retoma o caso com uma antiga amante. Ilude-se com álcool e sexo enquanto aguarda a morte do filho. Várias vezes pensa em optar pela própria morte para se libertar de tudo. Mas descobre que, como diz seu sogro, “algumas pessoas vivem saltando como rãs de uma falsidade para outra a vida inteira”.
Depois de Uma questão pessoal, Oe escreveu várias obras com temas similares, as quais chamou “histórias de meu filho idiota”. Logo depois de receber o Nobel, ele recusou a Ordem do Mérito Cultural, uma das mais altas condecorações do governo japonês, no qual nunca confiou. Também imediatamente após aceitar o Nobel, Oe anunciou que pararia de escrever. Ele disse que escrevia para dar uma voz a seu filho, mas que agora ele já tem a própria. Hikari aprendeu a comunicar-se ouvindo canto de pássaros e tornou-se músico clássico, compondo dois CDs que fazem sucesso no Japão e nos Estados Unidos.
O lançamento de Uma questão pessoal, ainda que tardio, é um alento e uma redescoberta de mais um grande autor japonês. A única obra de Oe que fora lançada no Brasil, O grito silencioso (Francisco Alves, 1996), está há muito tempo fora de catálogo. Além de Oe, recentemente o Brasil recebeu mais três ótimos livros do mordaz Junichiro Tanizaki (Diário de um velho louco, Estação Liberdade, 2002; Voragem, Companhia das Letras, 2001; A chave, Companhia das Letras, 2000 ), já analisados no Rascunho de setembro do ano passado. A invasão japonesa ainda teve em 2002 mais dois lançamentos do já clássico Yukio Mishima, Cores proibidas e Mar inquieto, ambos pela Companhia das Letras.
Ao lado de Oe, Mishima é considerado um dos mais importantes escritores do Japão pós-1945, com mais de 40 romances publicados e três indicações para o Nobel. Nascido Kimitake Hiraoka, filho de um burocrata, Mishima teve que abandonar o nome de batismo para o pai não descobrir que escrevia. Dono de um estilo seco e brutal, Mishima tinha uma personalidade perturbada. Tornou-se um narcisista obcecado pelo corpo, que esculpia em academias de musculação e artes marciais. Fundou um exército particular com jovens musculosos, com uma linhagem de extrema-direita e dedicada e a reviver o Bushido, código de honra dos samurais.
Em Cores proibidas, seu lado gay e radical vem à tona, numa elegia ao submundo homossexual da capital japonesa na metade do século passado. É marcante também o conflito da múltipla personalidade de Mishima, encarnada nos personagens Shunsuke Hinoki, escritor virulento e misógino, e Yuichi Minami, jovem homossexual apaixonado pela própria imagem. Já em Mar inquieto, lançado em outubro passado, Mishima surpreende e extrapola sua veia poética, numa adorável e inocente fábula amorosa. Em uma remota vila de pescadores, o jovem pobre Shinji apaixona-se pela bela Hatsue, filha do homem mais poderoso do vilarejo, que prefere que a moça se case com o abastado e preguiçoso Yasuo.
O tom doce e o final feliz de Mar inquieto deixam uma imagem ilusória do verdadeiro Mishima que, em 25 de novembro de 1970, invadiu um quartel-general em Tóquio para impor seus ideais nacionalistas. Neste mesmo dia, Mishima terminou A queda do anjo (Brasiliense, 1992), seu último livro, incluído na tetralogia Mar da fertilidade. O golpe no quartel foi um fracasso, levando Mishima a cometer haraquiri, tradicional suicídio dos samurais. Depois de rasgar o próprio ventre com um sabre do século 18, ele submeteu-se à decapitação por um de seus seguidores. Antes de morrer, Mishima gritou: “vida longa ao imperador”.
Quase dois anos depois da morte de Mishima, seu amigo Yasunari Kawabata, outro autor japonês premiado com o Nobel, cometeu suicídio. Em 1968, no discurso durante a cerimônia de entrega do Nobel, Kawabata havia condenado a prática do suicídio no Japão. Ele não deixou bilhete explicando a mudança de idéia.