Exigir ética é ser moralista?

Domingos Pellegrini rebate críticas a seu artigo sobre Dom Casmurro
Domingos Pellegrini
01/04/2006

Bentinho é um parasita mau-caráter, indeciso e vacilante, adulador quando é de seu interesse, cruel idem, escravagista usante e militante sem qualquer problema de consciência, machista embora homossexual enrustido, e todos acham isso “normal”, aceitável porque embalado artisticamente!

 

Dizer que Machado trata da sociedade escravocrata e elitista de seu tempo é mentira, na verdade ele aceita e endossa complacentemente essa sociedade, isto sim, o que aliás sua biografia comprova.

 

Arrisco até conjeturar que Capitu traiu Bentinho por pura e simples insatisfação sexual, nisto Machado se refletindo também no seu personagem, pois seu casamento com Carolina terá sido sexualmente satisfatório? Então por que não tiveram filhos? Ah, já vejo ao machadistas se contorcendo, como ouso, mas ouso, até para vos irritar, conservadores de múmias.

 

Nem respondi a um artigo (Quem acha que Dom Casmurro (não) é uma obra-prima?, Hamilton Alves, edição 70, fevereiro/06) contestando minhas críticas ao machadismo cego porque o articulista diz perdoar Millôr Fernandes por dizer o mesmo que eu, mas a mim ele não perdoa, o que já diz tudo.

Mas outro insiste em me taxar de moralista (A literatura nos tribunais, Flávio Paranhos, edição 71, março/06), na postura amoral dos intelectuais para quem tudo é permitido em nome da arte ou da cultura. Cultura é, sim, tudo que o ser humano produz conscientemente (o que exclui os excrementos, portanto), mas nem tudo é aceitável. A cultura nazista, por exemplo, pregava a eliminação dos adversários. É aceitável? O leninismo pregava que os fins justificam os meios e uma ditadura “do proletariado” há de ser caminho para uma nova sociedade… (E tantas décadas demoraram tantos intelectuais para perceber o conto de bruxas ideológico que é o leninismo. Mas não se vê ninguém fazendo autocrítica, ao contrário, o que se vê é a omissão crítica, até para manter os empregos públicos e/ou a aura de visionários humanistas…).

Invoco novamente a comparação de Bentinho, de Dom Casmurro, com José Honório, de São Bernardo. As ações do personagem de Machado, narradas na primeira pessoa, são contadas em total satisfação consigo mesmo, colando narração e ação com simpatia e empatia mútuas. Ou seja: Bentinho é um parasita mau-caráter, indeciso e vacilante, adulador quando é de seu interesse, cruel idem, escravagista usante e militante sem qualquer problema de consciência, machista embora homossexual enrustido, e todos acham isso “normal”, aceitável porque embalado artisticamente! Não é à toa que Hitler conseguiu tantos intelectuais para o nazismo, intelectualidade não é sinônimo de integridade moral.

Já Paulo Honório também se apresenta na primeira pessoa, mas arrependido, escrevendo para purgar os pecados, tentando entender por que errou, embora ainda insistindo em se achar certo e mesmo orgulhando-se dos ardis e crueldades, mas com uma amargura que nos alerta e o desmente. O tom amargurado descola o personagem da narração, levando-nos a desconfiar e não a endossar suas ações, ao contrário do que acontece com o tom complacente e cúmplice de Bentinho com as próprias atitudes.

Não escrevi o artigo sobre Dom Casmurro (edição 68, dezembro/05) na ilusão de que esses intelectuais revejam seu ponto de vista, pois o orgulho cega a lucidez e a remela da cultura da consagração virou pedra em seus olhos, também até porque concordar comigo seria reconhecer que passaram a vida adorando um deus de barro. Mas quis enfiar o dedo na brecha aberta por Millôr e abrir passagem para que outros, jovens, não tenham receio de ver com os próprios olhos.

Mencionei que não li o romance de Machado no colegial e na faculdade, apenas assinando trabalhos coletivos, não por me orgulhar disso, mas para evidenciar como essa cegueira da cultura da consagração se transmite geração a geração, passa pelas escolas, pela imprensa, pela crítica que também engole o dândi como gênio porque exigiria coragem demais ir contra a corrente. Uns não leram mas endossam que é genial, porque outros leram e dizem que é genial, porque outros antes disseram que é genial, porque o autor é o Machado erudito, fundador da Academia, etc… Ninguém tem a coragem de dizer, como no artigo de Affonso Romano de Sant’Anna sobre Duchamp (Tudo o que você sempre quis saber sobre o urinol de Duchamp e ninguém nunca lhe contou, edição 71, março/06), ei, esse rei está nu, cadê a roupa desse rei?

Bentinho é asqueroso moralmente, sim, e o escritor o endossa inequivocamente, o tom narrativo endossa plenamente o caráter do personagem, o que me basta para rejeitar também o escritor. Dizer que Machado trata da sociedade escravocrata e elitista de seu tempo é mentira, na verdade ele aceita e endossa complacentemente essa sociedade, isto sim, o que aliás sua biografia comprova.

Se mencionei que Bentinho é homossexual quase confesso, foi para colocar algum tempero nessa estéril e chatérrima discussão sobre se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Ora, claro que traiu e o filho é de Escobar, se parece com Escobar, tem olhos de Escobar, voz de Escobar e até anda como Escobar. Genética é uma ciência, não uma opinião. Arrisco até conjeturar que Capitu traiu Bentinho por pura e simples insatisfação sexual, nisto Machado se refletindo também no seu personagem, pois seu casamento com Carolina terá sido sexualmente satisfatório? Então por que não tiveram filhos? Ah, já vejo ao machadistas se contorcendo, como ouso, mas ouso, até para vos irritar, conservadores de múmias.

Para mim, não haveria problema Machado ser um homossexual enrustido como seu personagem, com um casamento de conveniência mútua, como parece que foi o seu com a velhusca e feiosa Carolina, mas o que não aceito é achar genial um romance tedioso, sim, do começo ao fim, pois começa falando de tédio e tediosamente termina.

Quando vejo o Rio de Janeiro crescentemente tomado pela bandidagem, lembro de uma foto do então governador Brizola com seu vice Darcy Ribeiro, sentados ao centro de uma grande mesa com bicheiros cariocas, após um acordo de cooperação político-administrativa-convival que funcionou como senha para as contravenções e depois o crime organizado serem encarados como aceitáveis, parceiros de uma visão “progressista-humanista-tropicalista-semvergonhista”. Deu no que deu. Não é porque a dupla Brizola-Darcy montou o mais conseqüente (e infelizmente depois desencaminhado) projeto educacional neste país, como diz o Lula, que vou esquecer o que fizeram de errado.

Prefiro acreditar que o certo é certo e o errado é errado. Que não há um território intermediário onde os valores se confundem, como também ocorre numa grande parte cínico-niilista da literatura de Rubem Fonseca. Para mim, nenhum autor é deus intocável e irrepreensível, inclusive João Cabral, com seus últimos livros repletos de poemas medíocres que reforçam a tese de que tão bom quanto jogar bem é saber quando parar, apesar do último defensor de Machado (Flávio Paranhos) dizer, brincando, que tocará fogo neste jornal se alguém disser algo contra Cabral. Pois está dito.

Em Dom Casmurro (e em muitos contos e em Brás Cubas também), Machado me parece mulato com vergonha da própria raça, aceitador incondicional da escravidão, encantado com a vida das elites, que procura reproduzir e imitar através de seus protagonistas cínicos, com uma elegância erudita de dândi que ilude os ingênuos e encanta os escapistas como ele. Mas, assim como Hitler encantou grande parte ou mesmo a maior parte da intelectualidade de seu país (e de outros países) no seu tempo, a obscuridade perdura enquanto não há quem jogue luz e diga não, isso não é certo, não, mesmo que até o Príncipe de Edimburgo tenha dito que o nazismo era bom e o Papa da época também tenha sido simpatizantes.

A comparação com o nazismo não é descabida, não, quando dizem que minha visão, estritamente ética e comprovada por ações relacionadas de Bentinho, é apontada como moralista. Ora, num tempo em que ainda há quem diga que Zé Dirceu era bem-intencionado e o problema é que “foi traído”, sinto renovada a confiança de que é preciso insistir que ética não é uma coisa etérea, é conduta, e se manifesta também na literatura, nas ações dos personagens e no modo como são enfocadas.

Aliás, relacionei a maioria das ações de Bentinho que o configuram como um crápula, mas a isso ninguém se refere. Só dizem que é literatura, como se fosse feita de um material amoral. Amoral é quem pensa assim.

E, se insisto nisso, não é por ser teimoso; teimoso é quem teima comigo, só para terminar brincando mais este artigo sobre esse bruxo que levam tão a sério e, francamente…

Domingos Pellegrini

Nasceu em Londrina (PR), em 1949. É autor de O caso da chácara chão, Meninos no poder, Quadrondo, entre outros.

Rascunho