A poesia e a prosa de Manuel Bandeira são citadas, quase sempre, como exemplos de “simplicidade”, um substantivo fluido, cujas acepções permitem conclusões diversas e, sob certos aspectos, conflitantes. A obra de Bandeira seria isenta de complexidade? Em que medida? Ela não guardaria significações ocultas ou passíveis de serem subentendidas? Seus textos estariam presos a uma singeleza plana, de fácil e imediata compreensão? Poderiam ser tomados como exemplos de candura? Ou ler Bandeira significaria penetrar em um universo no qual o eixo de denotação praticamente exclui os aspectos conotativos?
Na verdade, tal classificação simplifica injustamente a obra do poeta pernambucano, pode desviar a atenção dos leitores para aspectos superficiais dos textos e, em determinados casos, esconde uma tentativa de descrédito.
Para lançar por terra qualquer visão superficial da obra de Bandeira, basta ler seu ensaio autobiográfico — Itinerário de Pasárgada (Seleta de Prosa, Nova Fronteira). Ali, encontramos o escritor que jamais descuidou de conhecer os “valores plásticos e musicais dos fonemas”, o conhecedor da fonologia da língua portuguesa, consciente de que “uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso”. Acompanhando sua formação, entendemos como o desenvolvimento de seu estilo — iniciado com a leitura dos versos de histórias da carochinha, ou por meio das cantigas de roda, das trovas populares, das “coplas de zarzuelas”, dos “couplets de operetas francesas”, dos pregões dos vendedores ambulantes e dos “versos de toda sorte” que o pai lhe ensinava — chega a alcançar exercícios mais complexos: “Quantas vezes, querendo lembrar uma estrofe de um poema, uma trova popular, e não conseguindo reconstituí-la fielmente, fazia da melhor maneira o remplissage, depois, cotejando as duas versões — a minha e o original, verificava qual delas era melhor, pesquisava o segredo da superioridade e, descoberto, passava a utilizá-lo nos meus versos”.
Também a tradução o ajudará, permitindo que descubra “o tesouro que são a sintaxe e o vocabulário dos clássicos portugueses”, pois “a sintaxe dos clássicos, mais próxima da latina, é muito mais rica, mais ágil, mais matizada do que a moderna, sobretudo a moderna do Brasil”. Bandeira, no entanto, jamais negligenciou as lições aprendidas com seu pai, para quem a poesia poderia ser encontrada “em tudo — tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”. Perceber os matizes da língua sem qualquer preconceito concedeu-lhe uma visão integral: “A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão”.
Do primeiro volume das crônicas de Bandeira, Crônicas da província do Brasil — cuja edição princeps data de 1936 —, que a CosacNaify acaba de republicar, surge o escritor atento à materialidade das palavras, consciente do amplo aprendizado descrito no Itinerário e da mensagem que deseja expressar, para a qual há apenas uma forma adequada, aquela “em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores”.
Metáfora e exatidão
Ler Crônicas da província do Brasil é deparar-se, em certos momentos, com uma língua morta, enterrada nas páginas dos dicionários; mas trata-se de um reencontro prazeroso, pois voltamos a ouvir vocábulos que caíram em desuso, substituídos no interminável processo de aprimoramento da língua, apesar de guardarem sua carga expressiva e uma sonoridade agradável. Ao relatar a primeira leitura do Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, Bandeira diz que o livro “declanchou” nele “um movimento de repulsão”. Se escrevesse hoje, certamente preferiria, ao invés do galicismo, o verbo “desencadear”. E numa das melhores crônicas, Reis vagabundos, o texto inicia com uma interjeição vivaz e raríssima, “juque”, atualmente substituída por “pimba” ou “zás”.
Na crônica O heroísmo de Carlitos, a experiência é diversa. A escolha das palavras reflete a busca pelo termo preciso. Ao descrever a marcha peculiar de Carlitos como a de um “tabético”, Bandeira acerta e, portanto, ilumina. Obriga o leitor a correr para o dicionário, mas esse será sempre um exercício salutar. Referindo-se às calças do personagem, qualifica-as de “lambazonas”, uma intensificação de “lambaz”, pelo fato de a vestimenta recordar esse esfregão feito de cordas ou trapos. Em outra crônica, No mundo de Proust, salienta a via anedótica das personagens desse escritor, utilizando o exato “embastida”, ou seja, “espessada”, “compactada”.
Quando se trata não de um termo específico, mas de um longo período, o conjunto pode nos envolver com seu ritmo, neste caso lento, reproduzindo nas frases o caminhar do flâneur: “Em Olinda há o silêncio e a tranqüilidade que favorecem os passos perdidos dos que se comprazem nessa contemplação do passado e dos seus vestígios impregnados de tão nobre melancolia” (na crônica Velhas igrejas).
Ao descrever os trabalhos de seu homônimo, o desenhista Manuel Bandeira — em Um grande artista pernambucano —, o texto abre com analogias deliciosamente inusitadas: “[…] o Recife tem o físico, a psicologia, a graça arisca e seca, reservada e difícil de certas mulheres magras, morenas e tímidas. Porque, não repararam que há cidades que são o contrário disso? Cidades gordas, namoradeiras, gozadonas? O Rio, por exemplo. Belém do Pará. São Luís do Maranhão são cidades gordas. A Bahia é gordíssima. São Paulo é enxuta. Mas Fortaleza e o Recife são magras”. Poucos parágrafos depois, no entanto, o cronista nos reserva a melhor figura, construída a partir de uma relação metafórica ainda mais imprevista, uma imagem decadente e ao mesmo tempo delicada, que a antropomorfia se encarrega de engendrar: “[…] as ruínas ingênuas de Sabará, onde as casas de porta e janela parecem sorrir contentes de se sentirem tão velhinhas […]”.
Mas Bandeira também é o autor de frases ágeis, nas quais a descrição se dá por meio de pinceladas rápidas: “[…] Sinhô para toda a gente era uma criatura fabulosa, vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão — é no Estácio mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura a tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem” (em Sambistas). Neste trecho, a pausa abrupta do travessão e a ausência da vírgula depois de “Estácio” aceleram a leitura, obrigando-nos a seguir o ritmo bruscamente alterado, como se de fato passássemos do samba aos arroubos frenéticos da macumba.
Há, ainda, o escritor que sabe criticar os costumes com bom humor, sem abandonar o lirismo: “Sim, Don Juan era o pecado: Casanova era o prazer. O amor do primeiro um tecido de angústias, uma longa expectativa de catástrofes; o segundo, pelo contrário, aliviava as mulheres, às vezes até os homens responsáveis dessas mulheres, de todo o peso dos imperativos morais; com ele a paixão virava coisa fácil, que se toma e larga, sem outras olheiras senão as dos excessos, inteiramente a salvo do suicídio, da tentativa de assassinato, da paranóia e até dos desarranjos do fígado”. Nessa crônica — na verdade, uma mescla de crônica e resenha —, o autor elabora um divertido elogio do amor sensual, até encerrar com um comentário saboroso, levemente irônico: “Três mil mulheres possuídas não consolam de não possuir três mil e uma…”.
Cinco crônicas se destacam, entretanto: A trinca do Curvelo, Reis vagabundos, Golpe do chapéu, Romance do beco e Lenine.
O mundo da infância pobre está radiografado na primeira. Bandeira salta com agilidade de um aspecto a outro, sem desprezar alegrias ou tristezas, revelando, por meio de um e outro detalhe, todo o universo em que já se manifestam as diferenças de classe e os dramas e agruras da idade adulta. Um dos meninos, Lenine, reaparecerá na crônica que leva seu nome no título. Nela, é interessante perceber como Bandeira desorienta o leitor, enfocando, inicialmente, o líder da Revolução Russa e, logo depois, reconstruindo seus diálogos com o garoto, sem jamais perder a oportunidade de sugerir semelhanças entre as duas figuras.
Reis vagabundos e Golpe do chapéu são historietas geniais. Bandeira demonstra acurada sensibilidade para desenvolver dois enredos envolventes, humorísticos. Ele conversa com a sintaxe de seu próprio texto, cria figuras e personagens imprevistas e não descuida do ritmo elétrico, pulsante.
Quanto ao texto Romance do beco, trata-se de um exemplo das profusas possibilidades que a crônica, enquanto gênero literário, oferece. Ele revela não só a diversidade da produção de Bandeira, mas ajusta-se perfeitamente ao que afirma Júlio Castañon Guimarães em seu posfácio: “[…] o que faz o encanto deste livro é tanto toda a sua preciosa carga de informação, quanto a elegância e o afeto que revestem seus textos, passando pelos momentos, ora mais, ora menos perceptíveis, em que ele envereda por trilhas que levam seja a um ou outro momento da poesia do autor, seja ainda a instantes da própria formação de sua poética”. Acompanhar as mudanças de perspectiva desse texto — que migra do marinheiro a observar a paisagem distante, emoldurada pelos telhados sujos, para o diálogo com o verso alexandrino de Emílio de Menezes, em seguida oferece-nos um parágrafo de cunho memorialístico, e depois envereda rumo ao universo proustiano, só então retomando o tema inicial, apenas para concluí-lo em uma síntese que não descuida de nenhum dos elementos utilizados — concede ao leitor um incontrolável arrebatamento, pois nos deparamos com uma escrita que soube mostrar-se perfeita na prosa e na poesia.
Visão do Brasil
Surge, contudo, um passadismo inadequado em algumas crônicas, uma devoção a certo Brasil provinciano, existente apenas nas fantasias de Bandeira. Ele reclama, de maneira injusta, dos viajantes que passaram por aqui e mostraram-se decepcionados com a visível decadência de nossas cidades (em De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes) e mostra-se exageradamente pueril ao descrever o que chama de “democracia sincera”, encontrável, segundo o cronista, “num pátio de igreja em dia de festa de Nossa Senhora” (em A festa de N. S. da Glória do Oiteiro). O autor sonha com um Brasil agrário, naïf, como se o melhor dos mundos residisse em uma cultura para sempre primitiva. Idéia manifestada, inclusive, na Advertência que abre o volume.
Mas são raros esses momentos de idealização. Na crônica Impressões de um cristão-novo do regionalismo, por exemplo, há uma visão equilibrada, nem um pouco passadista e saborosamente irônica.
O melhor do escritor, no que se refere à compreensão do Brasil, pode ser lido em suas límpidas interpretações do barroco e da arquitetura brasileira — e na defesa do patrimônio histórico. Poucos, inclusive, descreveram tão bem a obra do Aleijadinho: “Nas claras naves de Antônio Francisco dir-se-ia que a crença não se socorre senão da razão; não há nelas nenhum apelo ao êxtase, ao mistério, ao alumbramento. E se houvesse porventura alguma reserva que opor à sua obra estupenda, seria precisamente o excesso de personalidade, que não capitulou diante da divindade”.
Finalmente, em Recife — evocação que sintetiza a memória e o presente que decepciona —, não há espaço para idealismos ou críticas exageradas às mudanças. Ali, o homem solitário se defronta com seu passado irrecuperável — “Não havia nada para quebrar a ilusão da minha saudade” —, sabedor de que apenas a concretude da escrita, e não lembranças melancólicas e fugazes, poderá aliviar a angústia diante do que está irremediavelmente perdido.