Dia desses, mal terminara um texto, submeti-o, como de hábito, à apreciação de um jornalista amigo. O referido era um longo ensaio sobre um escritor de minha admiração, e o colega foi categórico:
“Bom, mas você acrescentou umas pitadas de emoção e elas não estão na receita, são plenamente dispensáveis, fazem desandar o rigor.”
Entendi, mas não procedi. O puxão de orelhas do amigo, no entanto, não deixou de ter sua serventia, pois, concluída nossa conversa ao telefone, percebi que atualmente a emoção anda com baixíssima cotação no mundo das artes. Blasé é ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada.
A leitura do livro de José Castello, João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Diário de tudo, caso chegue aos olhos do meu amigo, sem dúvida será agraciada com sua reprovação. Ainda não entendi, e peço “ajuda aos universitários”, a razão que justifique tanto medo da emoção, principalmente quando ela é magistralmente tratada, como nos ensina José Castello.
Sei que comentários repetitivos ecoarão de norte a sul, pois a reprodução das idéias destrutivas é uma das nossas mais fortes características, afirmando que Cabral não era assim, que fulano que conviveu com Cabral me disse que ele nunca foi tão emotivo, tão sentimental como retratado no livro. Esses argumentos são de uma tolice tão grande, mas tão grande que prefiro ignorá-los, todavia ainda sou um ser primitivo, refém das emoções, e não posso desperdiçar a chance.
Concordemos então que Cabral não tenha sido como dizem essas pessoas que ora fazem questão de espalhar por aí seus testemunhos, plenamente dispensáveis, mas como Castello diz, em seu livro. É isso que interessa e ponto final. Sendo assim, não se configura a menor incoerência na personalidade retratada. Só mesmo argúcia, talento e sensibilidade. Atenção: não é crime de lesa-pátria, da parte de um crítico bem acima da média e um artista original, apontar aspectos tão significativos à gênese do poeta como a atuação da memória preservada. Quem estiver com o livro em mãos, por favor vá à página 35 e encontrará, em seu limite, informações da maior relevância para a compreensão da poesia de João Cabral de Melo Neto. Para aqueles que ainda não possuem o livro, vou “liberar” um trecho:
Muitas pegadas do passado podem ser lidas nesse ferimento. O zumbido do canavial, “voz sem saliva da cigarra,/ do papel seco que se amassa, /de quando se dobra o jornal”, sopra ainda hoje na memória de Cabral, como está registrado no poema “A Voz do Canavial”. Também nessa voz o som se confunde com o talho: “assim canta o canavial,/ ao vento que por suas folhas,/ de navalha a navalha, soa”. Há um folhear do vento que, mais tarde, é transposto para os livros na forma do ranger dos versos, construídos com palavras ásperas e cortantes. A paisagem desfila: o menino a retém e, a seu modo, a elabora. Ela vem, com sua força, envolver o ferimento. Toma o seu lugar. Nasce, assim, o poeta.
João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo é o resultado dos 21 encontros, ocorridos de março de 1991 a abril de 1992, do poeta com o jornalista. Os encontros aconteceram no apartamento de Cabral na Praia do Flamengo e foram registrados em 15 fitas. Após esses encontros, Castello se refugiava num botequim da Praia do Flamengo e registrava num caderno verde, de espiral, o making of das entrevistas. Diário de tudo é aquele caderno verde que ora completa a nova edição. Por falar nisso, um alerta se faz necessário: a edição atual não invalida a anterior, muito pelo contrário, a torna tão importante quanto. Arrisco dizer que se torna indispensável o confronto que permitirá ao leitor o contato com uma versão mais jornalística, menos emocional. Como podem perceber não há motivos para aquelas restrições elencadas lá no começo, em se tratando do mote de ambas as edições, temos aqui mais um exemplo do rigor e da fidelidade do autor. Se eu fosse você, e mesmo não sendo, assim o fiz; me deliciaria com as duas.
Parentesco
Confesso que comecei e concluí minha leitura do belo trabalho do José Castello em companhia da lembrança de um livro de outro mestre: Cioran. Exercícios de admiração não precisa ser submetido ao vexatório exame de DNA para comprovar seu parentesco com a obra de Castello, e seu traço mais marcante é que jamais se estabelece a subserviência. Aqui a admiração faz jus a Nietzsche em Zaratustra: “Para ser meu discípulo fiel, não me seguirás.”
Se o Cabral do qual todos estamos quase cansados de ouvir falar é aquele angustiado, conforme retrata o episódio ocorrido na ABL, na ocasião de uma homenagem ao recém-falecido escritor Francisco de Assis Barbosa, convém não tomarmos a conduta do poeta naquele instante pouco peculiar como emblema de suas angústias ou convicções.
A leitura adequada do livro de Castello é oportuna, também, para desfazer várias confusões. No que diz respeito à poesia de Cabral, a mais importante talvez seja a de permitir ao leitor entender o que seja sentimento num poema. O que Cabral pratica não é ausência de sentimento, tampouco a secura do verso, mas o indispensável, mantendo a fidelidade à realidade, à vida. O estranhamento é fruto da nossa intimidade com a expressão pura e confusa de pieguice com falsidade, praticamente a identidade da poesia brasileira ao longo dos tempos. Urgente — e isso depreendemos tanto dos versos como da conduta do poeta exposta no livro em questão — é que as trapaças, os golpes baixo que o existir costuma nos aplicar ocorrem sem aviso prévio e, desse modo, é fundamental manter o olhar atento na direção da realidade. E outro nas nossas limitações. Infelizmente, paciente leitor, a dor não envelhece. Como Cioran, em Exercícios de admiração, Castello aponta as pistas que nos conduzem à justificativa da obra do poeta. Não visualizamos a menor pista de otimismo e sim um transbordamento de lucidez. Livre das amarguras, companheiras fiéis do romeno, Castello navega em águas vigorosas, águas onde o vigor é calmo, poético, quase uma confissão.
No Diário de tudo, Castelo apresenta um Cabral preso ao vazio que ele denominara angústia, os médicos trataram como depressão e este aprendiz prefere chamar de melancolia, por parecer menos técnica e acometer, de preferência, àqueles capazes de não desperdiçar emoção, àqueles que se comovem demais. Melancolia que deixa exposto o germe psicológico na solidão do artista que sobreviveu aos amigos.
Quando fiz referência ao fato de Castello fazer uso da emoção e, aparentemente, ser guiado por ela em algumas ocasiões, convém alertar que tal opção não implica em perda de rigor estilístico e honestidade, quer do jornalista, quer do admirador. A emoção é uma das protagonistas do livro, comedida atuação no tom exato; o outro protagonista é o próprio autor que se faz presente em todas as cenas, quer em O homem sem alma quer em Diário de tudo. Presente sim, mas não como um Hitchcock e sua já esperada aparição com seu canhestro hábito de olhar para a câmera, mas como Antonioni, cujo rosto não é mostrado, porém o vemos a cada fotograma. Talento, paciente leitor, talento, algo que existe para ser sentido. Quanto aos coadjuvantes, destaca-se, principalmente em Diário de tudo, Marly de Oliveira. E aqui talvez resida a causa das prováveis estranhezas apontadas no livro. Castello apresenta ao leitor um Cabral apaixonado e carinhoso, o que muitas vezes pode até ser confundido com submissão. Mas o amor permite isso, o poeta cala para ouvir Marly.
Outra característica do trabalho de Castello é conseguir aproximar o poeta do leitor, tarefa árdua pois Cabral foi apresentado como um sujeito avesso às emoções, sisudo, aquele que entre tantos “não gosto”, também não gosta de música. Tal versão, o autor conseguirá desmistificar ao retratar um Cabral emotivo, e se o poeta só se comportou assim com seu entrevistador, mais um dos tantos méritos, volto a repetir, desse que é um dos nossos maiores críticos. Jornalista conquistar a confiança do entrevistado é fato digno de comemoração, e, em se tratando de João Cabral, o fato ganha dimensões estratosféricas, convém recordar o que disse Antônio Carlos Secchin na ocasião do lançamento da versão anterior:
“A vida de João Cabral é um livro fechado, e que a custo se deixa entreabrir.”
Desconfio que o autor também falou de Cabral para falar de si mesmo, e talvez esteja nesse detalhe a chave que abriu o livro sem muito custo e que justifica meu “exercício de admiração” por José Castello, um homem e suas almas.
Da minha carteira de aprendiz, agradeço ao mestre.
PS.: O texto citado nas primeiras linhas deste é um ensaio sobre o poeta Carlos Nejar publicado na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional.