Através de uma epígrafe de Stéphane Mallarmé, o poeta pernambucano Almir Castro Barros anuncia na abertura de seu sexto livro de poemas, Um beijo para os crocodilos: “Eu só criei minha obra pela eliminação./ A destruição foi a minha Beatriz”. Na articulação desses versos ao título da obra, desconfiaríamos de que a voz lírica iminente se ocuparia com a eliminação dos crocodilos humanos de sua vida, pondo-se superior a eles na medida em que, frente ao traiçoeiro e mentiroso das relações, responderia com o beijo altivo da poesia: “Olhando isso,/ Dante/ Insistiria em atiçar fogueiras/ Contra ressurgidos maus”. Talvez por esse motivo o poeta convide o leitor a um verdadeiro exercício de devoção e fidelidade a seus poemas, uma vez que a leitura de Um beijo para os crocodilos implica, desde o início, uma entrega profunda por parte de quem folheia; a atenção sem distrações de quem flerta com o rosto do verso prenhe de mistério.
Tamanha contenção faz a poética de Almir Castro Barros delinear-se também mediante a eliminação da palavra-adereço, não raro do adjetivo inócuo e, paradoxalmente, nocivo para a literatura, porquanto traidor — leia-se: crocodilo — da consistência e auto-suficiência de uma poesia substantiva, ou seja, de verdade. Curiosamente, poder-se-ia alegar que a verdade de uma poesia residiria justamente na sua dissimulação permanente, na crocodilagem dos sentidos, conforme ocorre, sobremaneira, neste livro repleto de enigmas. Não porque se insinue hermético, pois, na lembrança do que disse outro pernambucano, João Cabral de Melo Neto, o hermetismo — se há — está no leitor, não na obra. O enigma verbal de Um beijo para os crocodilos deve-se à depuração pela qual passa uma escrita desprovida de linguagem instrumental, servil e sabida de que toda entrega fácil, sem dor, sem sedução e sem impasses, não concorre para um encontro amoroso duradouro e efetivo. No máximo, para a frivolidade do que se esgota no momento mesmo da aproximação e que, portanto, uma vez mais “crocodilo”, segue alheio e escasso de afetos, feitos e caminhos. Assim, certa dificuldade imposta pela poesia ao leitor pretende, ao revés, respeitar a nobreza do corpo-a-corpo com a palavra, que possui carnadura e vida próprias, sem padecer como projeção subjetiva de quem escreve e lê.
De João Cabral, com quem se aprende, na literatura brasileira, uma poesia do menos, tão árida quanto sedenta de claridade, chegaríamos à noção poética de claro enigma, cara a Drummond. Afinal, na penumbra imagética de Almir Castro Barros — dotada de certo surrealismo filho de Murilo Mendes — não ouvimos o eco predominantemente solar da dicção cabralina, quase didática na fenomenologia do sertão. Da vida severina, herda, sim, o coração agônico ou agonizante (do homem, do verbo), marcadamente expresso na recorrência da própria palavra “agonia” em diversas passagens do livro: “Até o refinamento, só a dor conduz”. E é pela via das aflições que o poeta reconhece sua obra construída, ainda, pela eliminação – involuntária – das vozes que ama-amou-amará e às quais dedica numerosos escritos no livro: “Perdemos um amigo/ Por excesso de mar e vento/ Ou multidão que o quer mais/ Mais que nós”. Seja a dos escritores, como nos poemas dedicados a Italo Calvino, Goethe, Chico Buarque e Drummond; seja a de personalidades históricas da política, como Fidel Castro; seja a de lugares importantes, como a Amazônia e o extinto Bar Savoy; seja a dos filhos, parentes e demais indivíduos queridos; seja, como no poema Universal, a dos “verdadeiros criadores”. Ressentindo a perda de pessoas várias, incansavelmente lhes doa apelos in memoriam para comemorar, ao revés, um ganho irreversível; isto é, incansavelmente se doa ao engenho da memória, que inclui na eternidade o que pareceria sumariamente eliminado pela fugacidade crocodila do tempo: “Mas só perdemos mesmo um velho amigo/ Quando insetos destroem a lavoura de urzes/ — Nossa ponte comum”. Doa-se, enfim, a si mesmo (dedica, inclusive, um poema a si mesmo) como enredo ontológico das vozes tantas que, não emudecidas, cuidarão também de não o emudecer, não o eliminar na condição de ser vivente enquanto interdependente de todos os outros.
Ao chronos, o verbo de Almir Castro Barros manda finalmente um beijo, à medida que surpreende o passado com o presente da escrita já no futuro inscrita. Pousando em si, o poeta se declara: “Guardo-te/ Como objeto já sem nome/ Em luta/ A cinzelar sob o esmeril dos pés/ De quem acaso/ Passa”.