O ato de leitura se configura quando ocorre a interação entre texto e leitor. Podemos dizer que se localiza aí o coração da comunicação literária. Para que isso ocorra, caberá ao leitor realizar suas articulações, lançar mão de seus pontos de vista, apontar identificações e dar sentido à narrativa. A partir desses aspectos o leitor buscará a coerência do texto, e para tanto analisará as estratégias textuais do autor, seu método de composição. Cabe lembrar que esse leitor empírico dificilmente corresponderá às expectativas do autor. O leitor privilegiará elementos que o ajudarão a compreender a obra, que iluminarão uma trilha nada familiar e até mesmo hostil.
Em O demônio da teoria, Antoine Compagnon alerta:
Muitas questões são levantadas a respeito da leitura, mas todas elas remetem ao problema crucial do jogo da liberdade e da imposição. Que faz do texto o leitor quando lê? E o que é que o texto lhe faz? A leitura é ativa ou passiva? Mais ativa que passiva? Ou mais passiva que ativa? Ela se desenvolve como uma conversa em que os interlocutores teriam a possibilidade de corrigir o tiro? O modelo habitual da dialética é satisfatório? O leitor deve ser concebido como um conjunto de reações individuais ou, ao contrário, como a atualização de uma competência coletiva? A imagem de um leitor em liberdade vigiada, controlado pelo texto, seria a melhor?
Ao afirmar que “o texto é um tecido de citações” que podem ter origem em outros textos, Roland Barthes desmistifica o autor como criador do texto. Ao retirar essa carga de importância do autor, Barthes elege o leitor como aquele que seria o encarregado de dar sentido ao texto no momento da leitura: “O leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino”.
Calma, apressado leitor, não estamos falando de competência do leitor, tampouco restringindo a análise a uma questão de gosto pessoal. Ocorre que um livro existe graças ao leitor, e não é nada incomum este oferecer sobrevidas a determinadas obras.
Você dirá: mas um livro que ostenta prêmios e prêmios não precisa desse leitor que busca apenas um lazer, uma literatura que lhe permita passar o tempo enquanto aguarda numa sala de espera qualquer. Pois este aprendiz, do alto de sua arrogância, alerta: desconfie dos prêmios literários, os nossos e os dos outros.
Três mulheres fortes é um exemplo de livro premiado: Goncourt, França, 2009. E, ao mesmo tempo, exemplo de uma banalidade sem fim. Forma e conteúdo unidas na marcha célere rumo ao lodaçal dos frívolos salamaleques.
A autora está em dívida com seus leitores: pagaram pelo livro e precisarão dar sentido ao mesmo — caso insistam em buscar sentido para tantos desencontros ao longo das narrativas. Por “desencontros”, quero me referir à quantidade de questões gratuitas ao longo das histórias. Isso mesmo: histórias. Três histórias que não apresentam relação, que pelo menos justifiquem o termo.
Quase ingênuo leitor, se algum dia você leu em algum livro de teoria literária, sabe que se o autor escrever num determinado ponto da narrativa que fulano de tal é professor de filosofia, essa característica não tardará a aparecer no personagem. Pois bem, você leu e acreditou. Saiba que Marie NDiaye não teve essa informação.
Sei que está pensando que misturo teoria literária com uma obra artística, com a literatura propriamente dita, e pergunto: eu deveria usar teoria literária para tratar de política? Não se trata de tentar enquadrar a criação, a arte, e sim em buscar sentido. Para tanto, utilizam-se as ferramentas adequadas. A partir deste ponto, você perceberá a tentativa de explicar/traduzir Três mulheres fortes.
Fortes?
Trata-se de um romance composto por três capítulos, melhor dizendo, dividido em três partes. Nada disso — o leitor encontrará três narrativas, duas narradas por mulheres e uma por uma voz masculina. Esta com forte parentesco com Alain Robbe Grillet. A autora deve considerá-las partes integrantes de uma narrativa maior, ponto de vista oposto ao deste resenhista.
Antes de continuar, vale ressaltar o caráter obscuro da obra: nada é como parece, ou melhor, difícil é encontrar algo que se pareça, que tenha relação. Ao mesmo tempo, a autora conseguiu — e parece que sem dificuldades — chegar à outra extremidade, onde tudo se parece, onde a repetição se estabelece.
Daqui a pouco desconstruiremos a obra de Marie e abordaremos suas peculiaridades, buscaremos seus detalhes. Ou seus disfarces. Caso encontre uma ligação entre as narrativas/capítulos, saiba: ela não será explícita e tampouco virá da seqüência cronológica; com muita boa vontade e escavando daqui e dali caberá a determinados personagens a responsabilidade pela unidade de Três mulheres fortes. Pobre leitor!
Essa bagunça na ordem dos fatos passa a ser considerada característica diferenciadora da autora — vale tudo, inocente leitor, vale tudo em literatura. A justificativa: caberá a nós, leitores, desvendar a história. Não esqueçamos que logo virá a outra justificativa: trata-se de romance onde predomina a psicologia, as questões subjetivas dos personagens…
Em frente.
A primeira narrativa, primeiro conto, primeiro capítulo… fica a seu gosto, criterioso leitor. Trataremos a primeira parte como “A história de Norah”. Testemunharemos o reencontro de Norah e seu pai. O pai que tivera inúmeras mulheres e vários filhos, o pai que abandonara Norah, a mãe, a irmã, e levara o filho para viver com ele. O leitor concluirá que a pele do pai, senegalês, não é branca; que a mãe de Norah é branca; e a prole não chega a ser branca.
Arrasado, afogado entre mulheres inúteis e mortificantes que nem sequer eram bonitas, reflete Norah tranqüilamente, pensando em si mesma e na irmã, que, segundo o pai, sempre haviam tido o defeito redibitório de ter um tipo muito marcado, ou seja, de se parecerem mais com ele do que com a mãe, provando, dessa maneira, desagradavelmente, a vacuidade de seu casamento com uma francesa — pois o que aquele assunto poderia ter produzido de bom senão uma prole quase branca e filhos de constituição sólida?
Do pai, Norah guarda a lembrança de um homem delicado, rico, elegante no vestir, de boas maneiras à mesa, alguém que costumava se expressar num francês correto. Ele se orgulhava disso. Mas o pai que ela reencontra é “outra pessoa”. Vivendo numa casa decadente, o dândi se transformou num homem que cheira mal, se veste mal, usa chinelos de plástico, que à mesa se joga sobre o prato de comida.
O que Norah esperava encontrar? Há trinta anos, Norah — então com oito anos; sua irmã, nove — encontrara uma carta do pai que partira levando o caçula Sony, de cinco anos. A mãe estava proibida de visitar, de manter qualquer contato com o filho. Esporadicamente, o pai enviava algum dinheiro. Norah lutou e tornou-se advogada. Sua irmã entrou para uma seita.
De parte do pai, as mulheres foram merecedoras de seu descaso, nada mais. As outras, com quem teve filhos, não mereceriam tratamento diferente.
O que fora capaz de tornar pior aquele homem de caráter duvidoso?
Norah não tardaria a encontrar a resposta, e ela estava com Sony. Seu irmão responde pelo assassinato da mulher de seu pai, mãe de duas meninas que vivem confinadas em um quarto, mas logo serão despachadas para a casa de seus avós maternos. Repare que este aprendiz não revelou o nome do pai das meninas, tampouco o do verdadeiro assassino. Não, de maneira nenhuma. A primeira história tem seus atrativos. Apesar de óbvios.
Norah precisa definir como defenderá Sony: apontará o assassino? Será essa a maneira de ajustar as contas com o passado?
Três mulheres fortes. No entanto, curioso leitor, não leve a sério o título. Norah tem uma filha, vive com um homem que também tem uma filha. Forte? Resignada. Deixa claras suas desconfianças e insatisfações com o companheiro, e seus pensamentos geralmente o colocam na posição de suspeito — suspeito de algo sórdido, convém ressaltar. No entanto, não se percebe a menor movimentação no sentido de dar fim a tal insatisfação. Enquanto isso, os outros homens não são fortes nem fracos. São cruéis, opressores, racistas. Jakob, companheiro de Norah: o personagem forte da primeira história.
Aparentemente, Norah deixou a filha Lucie, Jakob e a filha deste, Grete, em Paris. Obedeceu ao chamado do pai, que a queria no Senegal. Certo dia, ao passar em frente a um hotel, avista Jacob e suas filhas. Isso mesmo, o trio vai ao Senegal. Sem aviso prévio e também sem muito interesse em Norah. Jakob faz o contraponto à rigidez de Norah. Talvez a suposta fortaleza da “mulher forte” não passe de disfarce da tensão.
Avancemos à segunda história.
Passado oculto
Na primeira, a protagonista oficial é Norah, embora a este aprendiz tal posição deva ser dividida com Jakob. Agora, a mulher forte é Fanta, mas o protagonista é Rudy Descas, seu marido.
A história mostra Rudy atormentado pela culpa. E como, pensa, seria um pai de família correto se não conseguisse apaziguar a consciência, como poderia fazer-se amar de novo?
O leitor, mais uma vez, terá a tarefa de desconstruir a história de Rudy a fim de encontrar o fio da meada da narrativa. A mulher forte? A mulher de Rudy aparecerá ao final da história/capítulo/conto.
Tudo começa ao amanhecer, quando Rudy sai para trabalhar, e termina com seu regresso em companhia do filho. O leitor “verá” o personagem em seu carro, telefonando de uma cabine, visitando algumas pessoas, indo à escola encontrar o filho — algo que não é habitual — e levá-lo para visitar a avó. E o retorno.
Esta segunda história tem seu charme: com o predomínio do monólogo interior, cenas vividas por Rudy trazem à tona seu passado.
Na primeira história percebemos a filha de Norah, a filha de Jakob, e a própria Norah, filha vítima do próprio pai — pai que espalhava filhos —; percebemos as conseqüências relativas à omissão e à opressão. O real e o imaginado por Norah quando suspeita de Jakob.
Rudy é um mistério. O que o levou a deixar o Senegal? Qual o papel de seu pai nesse episódio? E a mulher forte? Você, leitor detalhista, verá Fanta pelos olhos de Rudy. Uma mulher inteligente, porém oprimida pela pele branca do marido. Cabe ressaltar a sutileza com que o racismo é abordado nas três histórias. O leitor tira suas conclusões.
O terceiro texto traz uma personagem de nome Fanta. Pelas informações, podemos suspeitar se tratar da personagem do segundo texto. Podemos. Como também podemos concluir se tratar de outra personagem. Outra personagem, ou pelo menos de nome igual à personagem da segunda história. Digamos que este aprendiz chegou à conclusão de que Fanta é a mesma personagem presente nas histórias dois e três, bem como Khady Demba, protagonista da terceira história, talvez seja a mesma empregada doméstica do pai de Norah na primeira história. Pois bem…
A narrativa tem início na África: Khady Demba é casada, dependente do marido, conforme as tradições. Percebe-se que na sociedade africana a mulher é um ser totalmente submisso. Cabe a ela ter filhos, mas Khady é estéril, isso bastaria para torná-la uma inútil. Porém, não há o que não possa piorar e… o marido de Khady Demba morre. Após algumas humilhações por parte da família do finado, Khady é enxotada. Ela recebe uma quantia de dinheiro que permitiria sua chegada até a França, onde encontraria a suposta professora bem-sucedida Fanta. Isso feito, a missão de Khady Demba estaria concluída quando conseguisse “arrancar” algum dinheiro de Fanta e enviar à casa da sogra.
Khady precisará se reinventar para sobreviver. A personagem representa a peregrinação de inúmeros miseráveis africanos em direção à Europa. Ingênua — e quem não é ingênuo frente ao desespero? —, ela se deixa levar. A realidade cruel tem como contraponto a incondicional humanidade da personagem. Quando decide que não quer mais voltar para sua família, sua submissão parece ter chegado ao fim.
Em busca de uma unidade
Por falar em fim: Três mulheres fortes, três narrativas distintas, com alguma boa vontade chegaremos a uma unidade. Três mulheres africanas. No primeiro caso, o espaço não chega a ser explícito, mas certos nomes, a referência ao calor, nos conduzem à África. Três textos, três mulheres submissas — a pai, marido e família, respectivamente.
Três mulheres fortes é uma obra poderosa sobre os efeitos da culpa. No primeiro texto, esse sentimento pode ser notado em Norah, que se culpa por ter estabelecido uma relação com Jakob, por ter permitido que viesse junto com sua filha. E esta culpa diz respeito ao fato de ter se afastado, ou melhor, não ter feito nada para evitar o distanciamento de seu irmão.
A culpa permanece à espreita. O pai é duplamente culpado. Não digo os porquês para não atrapalhar sua leitura, respeitável leitor.
Na segunda história, Rudy Descas anda de mãos dadas com a culpa. É guiado por ela: por ter tirado Fanta de seu país, por tê-la traído. Khady, na terceira narrativa, é culpada por ser estéril.
Quase esqueci de um ponto que também pode ligar as histórias. Como que quase esqueço deles, dos pássaros?
Caso consideremos o pai de Norah um pássaro que vive sobre o flamboiã, um pássaro gordo, as outras histórias também apresentam seus representantes alados. Uma águia a acompanhar Rudy, e o corvo junto a Kathy.
Caro leitor, Três mulheres fortes é um exercício por vezes extremamente cansativo. No restante, pura adivinhação.