Este texto é ao mesmo tempo uma resposta à resenha de Adriano Koehler sobre meu livro A ordem secreta dos ornitorrincos, publicada no Rascunho de dezembro (edição 104) e intitulada Excesso de confusão, e uma reflexão breve sobre modos de fazer e entender ficção. A resenha, ao se apoiar em pressupostos e critérios inadequados, deu aos leitores do jornal uma visão deturpada da obra e de seus propósitos. Ao mostrar outros pontos de vista, além de defender meu trabalho, pretendo incentivar a discussão de idéias e o questionamento do óbvio, do consensual, do estabelecido a respeito do que é ou pode ser arte, literatura, ficção.
O principal problema da argumentação de Koehler é que se baseia no pressuposto de que a autora pretendia, ou o livro deveria, contar uma história. Não pretendi contar uma história neste livro, e ele de fato não promete nem faz isto. Ao entender como erro, ou incoerência entre estratégia e tática, algo que foi propositado, a resenha acabou refletindo excesso de confusão, não do meu livro, mas do resenhista diante de uma obra que não se enquadra nos parâmetros reconhecidos por ele para defini-lo, avaliá-lo e valorá-lo enquanto obra literária.
O terreno das definições é movediço, e há várias maneiras de interagir com esta obra. O professor de Comunicação João Winck diz que leu o livro como teoria. O escritor Nelson de Oliveira, que assina a orelha, define A ordem secreta como uma novela: “é uma novela, ou seja, uma narrativa longa sem começo nem fim, em que se pode (em tese) inserir novos capítulos sem que a estrutura seja modificada… Aliás, é a novela o gênero que mais se identifica com a noção contemporânea de falta de gênero, ou transgênero.” (1) O escritor peruano José Donayre Hoefken, que a resenhou, fala em “polifônica novela sobre a novela” e em “invenção literária como alicerce de uma ética reflexão sobre o discurso que, além de imitar a realidade, questiona os fundamentos das ciências e crenças contemporâneas a partir da tradição esotérica, da iluminação poética e dos pactos secretos” (2). Gosto da idéia de texto transgênero, ou de texto em definição.
Acredito que toda obra modifica ou ambiciona modificar, mesmo que minimamente, a arte e o conceito de arte como um todo, em graus variados de aproximação e afastamento com relação às tradições. Em qualquer caso, A ordem secreta dos ornitorrincos não é uma história fechada e completa, nem mesmo do tipo que utiliza “idas e vindas” ou “diferentes pontos de vista narrativos” para ser contada. Também não se trata de uma história usada como pretexto para trabalhar formas. O livro pode ser descrito como uma articulação maleável, puzzle de idéias, narrativas, imagens, palavras, sons e formas que se oferece para ser montado de maneiras diferentes por diferentes leitores e leituras. Trata-se de um convite para brincar com os elementos e princípios da construção de um texto. Aposto na disposição do leitor em aceitar este convite e compartilhar uma virtualidade, um acontecimento que só existe na relação, no processo, no trânsito entre a leitura e a escritura, a criação e a recriação.
Campo de indecisão
A sinopse que enviei para sites e livrarias não diz que o livro “conta a história de uma pesquisadora que decide fazer uma tese sobre uma ordem secreta do século 16”. Diz: “uma tese de história da ciência e um texto de ficção se escrevem ao mesmo tempo e se misturam”. Misturam-se de fato, a ponto de não se poder definir a natureza do texto que se escreve, da mesma forma que não é possível fazê-lo com os manuscritos considerados fundadores da Ordem Secreta do século 16, atribuídos a L. Há um campo de indecisão. A frase “você decide quem eu sou”, recorrente no texto, é uma deixa para que o leitor participe da montagem da obra, experimentando a condição de autor e fundador da Ordem Secreta dos Ornitorrincos, uma vez que, ao entrar na Ordem, ele a refunda, intervindo em sua origem, natureza e desenvolvimento com novos pontos de vista. “Ninguém fala sobre a Ordem Secreta dos Ornitorrincos”, diz-se no livro, porque dela só se pode falar desde dentro. Qualquer leitor atencioso notará que não é por acaso que L. também é a inicial de Lucas, o mais original dos evangelistas, aquele que contou mais versões dos mesmos acontecimentos. L. de Leitor!
Não há história, e também não há personagens individuais, identidades com características e atributos definidos, como idade, residência, profissão, características físicas e psicológicas, condição social. Os personagens, por assim dizer, são desdobramentos construídos e reconstruídos a partir de sucessivos olhares para a origem da narrativa. São mera montagem, artifício, plástica. Como se diz no livro, “apenas uma arte”. Não é por acaso que a figura de Madame Bovary, aquela que lamentava não poder ser “outra”, aparece como “os outros”, alusão também ao processo da criação literária referido por Flaubert na famosa frase “madame Bovary sou eu”.
Nestes desdobramentos, narradores e personagens são indefinidos e superpostos. Segundo o resenhista Marcio Renato dos Santos, “a estratégia de enunciar desconstrói o convencional modelo de um narrador fixo e bem identificado. O leitor pode até vir a se questionar a respeito de quem é a voz condutora da narrativa, se uma personagem feminina ou masculina, e mesmo um ornitorrinco — e isso não se caracteriza como eventual problema, antes opção estética”(3). É mesmo uma opção. O nome do duplo de Maria é Dora, como a paciente histérica de Freud, a primeira paciente, origem da psicanálise. As referências à psicanálise, cura pela palavra, à homeopatia, cura pelo semelhante, ao bissexualismo e ao transformismo não estão ali por acaso(4). Os sucessivos desdobramentos são experiências de manipulação dos signos, dos corpos, da natureza e da história, processos de transformação e cura, de re-criação de textos e corpos híbridos, maleáveis, mutantes, transgênero: ornitorrinco ou Drama Queer.
Tudo planejado
Repito várias vezes a expressão “não por acaso” porque a resenha de Koehler passa a impressão de que o livro carece de rigor. No entanto, tudo foi planejado nos mínimos detalhes, e isto não escapou a outros resenhistas, como demonstra Hoefken: “nesta obra nada é casual nem determinante nem inocente. Brum Lemos faz com que a definição de literário fuja do previsível. Ela não se detém no consenso nem parece se preocupar em cumprir um romance convencional para satisfação de “todo o mundo…”
O resenhista do Rascunho, ao não aceitar o convite para entrar na Ordem secreta, não consegue perceber as bases que orientam sua construção. Ele se prende a uma determinada lógica da composição de textos quando existem muitas possibilidades para isto. Entre outras coisas, meu livro dialoga livremente com enunciados de lógicas não clássicas. Logo no início, apresento uma versão do experimento do gato de Schröndiger(5), explicitando que paradoxos, contradições, rizomas, e “idas e vindas” constituem pistas para entrar no texto, ou nesta “ordem” que prescinde de identidade, linearidade, localização espacial e temporal, evolução progressiva. Neste texto, não é nem o ponto de espaço nem o instante de tempo em que uma coisa acontece que tem existência, mas sim o acontecimento.(6)
O resenhista deveria ter percebido isto, mesmo que não pudesse aceder ao conjunto dos procedimentos e relações (cujo número ultrapassa muito o exposto). Até porque o texto, obviamente, não exige conhecimento de lógica, história e filosofia da ciência para ser lido, entendido, usufruído. Coerentemente com seus objetivos, de permitir a apropriação dos processos por parte do leitor, ele mesmo vai explicitando seus métodos de construção, tudo amalgamado na e a serviço da proposta estética.
Koehler poderia ter criticado minha escolha e colocado como contraponto a alternativa de “contar uma história” como única possibilidade de validar A ordem secreta dos ornitorrincos enquanto literatura. Até poderia ter considerado minha proposta confusa, mas para isto teria que tê-la entendido na relação com seus objetivos e informá-la corretamente aos leitores do Rascunho. Mas o resenhista se perdeu no labirinto. Não foi capaz de, a partir da entrada dada, encontrar a saída. Ao não ver de cara o plano geral(7), não se arriscou a descobri-lo. Considerou mais seguro usar um mapa genérico, confeccionado a priori para um território idealizado. Agindo dessa forma, acabou falando de sua própria desorientação e confusão diante do que tinha em frente, e não do meu livro.
Notas
(1) Nelson de Oliveira, em e-mail para a autora.
(2) José Donayre Hoefken, “El pensamiento como poder transformador”. http://letras.s5.com/jd151008.html
(3) Marcio Renato dos Santos, “Da arte de pulsar intensamente no espírito do tempo”. Caderno G., Gazeta do Povo, 18/01/2008. http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/cadernog/conteudo.phtml?id=848080&ch
(4) Aproximações entre o ato criativo e a psicanálise, a idéia de cura pela palavra, encontram-se, entre outras referências, na base da filosofia da Escola Dinâmica de Escritores criada e dirigida por Mario Bellatin na Cidade do México. A introdução em português do livro El arte de enseñar a escribir (México/Chile, Escuela Dinámica de Escritores/Fondo de Cultura Económica, 2006) está disponível em http://www.baladaliteraria.org/2007/home.html (link “convidados”, “Mario Bellatin”)
(5) O Gato de Schrödinger é um experimento mental, freqüentemente descrito como um paradoxo, desenvolvido pelo físico austríaco Erwin Schrödinger em 1935 para ilustrar o que ele observou como o problema da interpretação de Copenhague da mecânica quântica aplicado a objetos do dia-a-dia. Entre outros, Maria Alzira Brum Lemos, Reinventando o labirinto: o acaso na ciência e a crítica à modernidade. Mestrado, Comunicação e Semiótica, PUC, 1992.
(6) Albert Einstein, O significado da relatividade, Armenio Amado Editora, Coimbra, 1984, tradução de Mário Silva, p. 43.
(7) Livre interpretação da noção de labirinto de Max Bense, Pequena estética, São Paulo, Perspectiva, 1975, pp. 132-133.