Eu quero ser um intelectual

Os novos dilemas da sociedade burocrática globalizada, seguido de um peculiar estudo de caso
01/07/2003

Todos já sabem: o mundo está globalizado. Evidentemente, ainda não sabemos como as coisas se procedem efetivamente numa circunstância nova como essa. Importante é saber que, se antes tomávamos um bom vinho francês, produzido a partir de uma seleta safra com meia dúzia de garrafas adornadas em ouro, rótulos escritos à mão e encantadas por uma aura de existência única no mundo, hoje podemos continuar desfrutando do mesmo prazer graças ao primo do amigo de confiança do nosso vizinho que é importador de bebidas via comércio ilegal e contrabando. Ora, não há mal nisso. A diferença é que antes poucos podiam desfrutar do líquido precioso; hoje, outros mais conseguem fazer o mesmo sem grandes sacrifícios financeiros — eis a maior virtude que os liberais sempre chamaram de democracia.

O problema aparece mesmo quando o sujeito solitário, bebendo seu trago no balcão de um bar refinado no centro da cidade, ou no interior de sua casa decorada com objetos exóticos recolhidos em suas viagens à Europa, degusta com amigos não apenas o líquido, mas a autenticidade daquele produto adquirido na seção de bebidas importadas em promoção do supermercado da esquina. Essa mesma pessoa até desconfia da autenticidade, pois ela vai ter o trabalho de ler o rótulo e conferir que a bebida foi envasada na periferia da cidade e que a garrafa foi feita com material reciclável. Mas isso não importa, sim a satisfação de estar experimentando o sentido aurático da bebida importada da cidade do sul da França — mesmo que ela não exista. Ele não bebe o conteúdo da garrafa, bebe o sentido que a mesma adquire nesse contexto de aquisição de mercadorias fetichizadas. Em outras palavras: ele prefere estar alheio às transformações do seu próprio consumo para se conformar na química do “porre”, que o faz indiferente a toda essa circunstância e seguro dos passos dados com a garrafa vazia na mão.

De certa maneira, estamos vagando como bêbados por aí. Uns com vinho, alguns com uísque, outros com cerveja, não importa. Interessante é perceber que não conseguimos mais dar conta da própria indiferença produzida pela supervalorização de determinadas instâncias da nossa relação com o mundo — assim como o bêbado valoriza o próprio porre. Essa indiferença, sintomática em alguns quadros sociais da atualidade, adquire uma potencialidade quando ela mesma, retirada de seu contexto de referência, é tornada exemplo de conduta para determinados grupos e relações sociais. Não se trata de uma psicologia comportamental dos indivíduos nem de uma sociologia das ações entre indivíduos, mas a constatação de uma situação cultural resultante da configuração do mundo atual e de suas estruturas de sociabilidade.

E o campo da cultura é bastante fértil para proliferação de novas possibilidades, experimentações, arranjos e ordenamentos. Porque na esfera da cultura, hoje, graças à própria globalização e ao modo como ela difundiu a expressão vazia de sentido, tudo pode ser inserido e entendido como “cultural”. Desde manifestações folclóricas, vestígios etnográficos, estudos antropológicos, obras de arte das mais diversas procedências, o próprio artista produtor de bens culturais, assim como o interventor da cultura que se expressa por meio de vários protagonistas como, por exemplo, os formalizadores de políticas culturais, os patrocinadores de “eventos culturais”, os críticos culturais, fazem parte desse universo ainda por se definir objetivamente frente ao processo que ora se coloca para nós.

Mas essa objetividade tem um preço muito caro, pois ela depende de uma série de pressupostos fundamentais que nos faça compreender, inclusive, os limites formais do chamado campo cultural. Pressupor isso é, de antemão, constatar no rótulo da nossa garrafa de vinho que ele não possui uma propriedade autêntica, a não ser aquelas características que nós elegemos para que ela se torne autêntica. É uma tarefa muito difícil concordar, por exemplo, que nossas atitudes estão “contaminadas” com um sentido falso e que delas emanam uma realidade na qual cremos de olhos fechados. Assim, como é difícil acreditar que a cultura em si mesma seja capaz de sublevar as estruturas mais conservadoras e virar a pele no seu avesso. A impossibilidade de colocar, no momento, essa objetividade no interior de um projeto mais amplo de transformação está no peso da responsabilidade deste, a quem inúmeras vezes nos dirigimos como “intelectual”. E imediatamente aparece-nos a indagação: o que há de autêntico no intelectual?

Sartre costumava dizer que o intelectual, antes das perguntas ou das respostas, deveria trazer sempre contigo a náusea em formulá-las ou respondê-las. Ou seja, o desconforto para com o arranjo lógico das coisas sobre as quais nos debruçamos deveria ser uma constante no ofício intelectual. Evidentemente, por trás dessa premissa ontológica havia a escola existencialista que primava pela objetivação do indivíduo no interior das ações desenvolvidas através da história. Mas há, ainda assim, um caráter positivo nessa afirmação do escritor francês: o intelectual não é (autêntico), ele pode vir a ser; e isso vai depender de sua própria escolha.

Abolida tal náusea com teorias e sistemas que burocratizam as relações pessoais no interior dos departamentos das universidades, conseqüentemente, deixa de existir a escolha intelectual, logo o seu “vir a ser”, e sobra-nos apenas aquilo o que “é”. Daí a imposição da indiferença como um padrão formal no trabalho dito intelectual. As universidades dos últimos 50 anos contribuíram decisivamente para esse contexto que agora se legitima com na mundialização da burocracia sistematizada — na forma de uma grande rede. Essas universidades foram, com o passar do tempo, gerando especialistas que ao seu modo procuravam estabelecer novas formas de relações com a esfera pública, e que comportassem essa mudança. Notemos, entretanto, que o problema não está na má formação teórica de professores, técnicos ou intelectuais que fazem uso da universidade e dos meios de comunicação que fundam a esfera pública. Muitos deles, pode-se comprovar, tem uma carreira digna e respeitável, que pode até resultar em vantagens materiais. O problema está quando essas capacidades são aplicadas apenas como justificativa e intensificação do discurso ético sobre si mesmo. Ou seja, eles não almejam a crítica do espaço público; eles se consideram o espaço público crítico.

A indiferença ao que acontece fora das paredes de seus respectivos departamentos obriga-nos a reconsiderar o caráter autêntico dessa “intelectualidade”. A escolha que lhes é concedida está restrita ao seu universo burocrático; fora dele, observamos apenas técnicos e cientistas desvinculados de uma organicidade capaz de reabilitar o sentido de um “vir a ser”.

Falamos há pouco da cultura e o que ela pode representar num projeto mais amplo de transformação social. Pois bem, o intelectual, não apenas como categoria mas como agente social, tem um papel importante na restruturação da esfera cultural, já que esta parece repousar sobre uma dicotomia problemática capaz de implodir a si mesma. Ou, ela se resolve como indústria num mercado de bens culturais, sustentado sem fins propositais — a não ser pela sua viabilidade lucrativa — pelo capital comercial; ou, ela se resume na expressão fragmentária de uma produção cultural vazia de sentido, exótica e desconectada da realidade que a produziu.

Antes de concluir, e iniciar um pequeno estudo de caso muito interessante que ilustra a contraditória atividade do intelectual contida no paroxismo regional/universal, cabe também lembrar que “ser intelectual” consiste em definir categoricamente o sentido e a significação do “ser” e do “intelectual”. Pois, “ser intelectual” não depende de uma escolha individual, simplesmente. Essa questão não se coloca antes das relações ou dos problemas, mas durante o processo dos mesmos na constituição da sociedade. Não é como o vinho barato que pode ser ingerido falseando uma autenticidade a cada novo gole.

O intelectual ponta-grossense: o dilema do “ser” e do “não-ser”
Nos últimos meses, até em virtude da discussão em torno da Universidade Estadual de Ponta Grossa (no Paraná) e da manutenção do curso de Medicina que há pouco foi revogado pelo atual governo do Estado, temos assistido pela imprensa local a um ardoroso exercício de reflexão sobre o rumo de nossas instituições públicas. Não só isso, é claro: outras conversas paralelas, e não menores, têm mostrado como a cidade se voltou para uma discussão calorosa e importante acerca das transformações sociais, políticas e culturais ocorridas no período posterior ao populismo sem-partido do prefeito municipal Jocelito Canto. Embora ainda seja difícil perceber a sua própria organicidade, uma hegemonia intelectual vem se firmando em função dessas mudanças sintomáticas. O mais curioso é que a participação, não somente restrita aos intelectuais da cidade, tomou outras esferas de sociabilidade como comerciantes, lojistas, costureiras, ou mesmo simples leitores dos periódicos citadinos.

Por isso mesmo, torna-se importante tomarmos como referência algumas diretrizes básicas, a fim de conglomerar as atividades dispersas e individuais de cada intelectual no município de Ponta Grossa. Porém, em virtude da própria geografia dos Campos Gerais (como é conhecida toda a região), exige também de nós muita observância quando na aplicação de tal estudo sobre os limites físicos da cidade. Ou seja: os princípios desse estudo valem somente para os intelectuais de Ponta Grossa! Castro, Carambeí, Imbituva, Palmeira e Tibagi, embora pertençam ao chamado complexo de Campos Gerais, já estão fora do alcance da força do pensamento ponta-grossense; assim como os distritos de Itaicoca e Guaragi — não por vontade própria, mas por contingência social dessa mesma intelectualidade que ora se constitui.

Considerada a complexidade do pensamento e a fisiologia intelectual que agora emerge na cidade, esboça-se aqui alguns princípios que podem nos orientar na compreensão do fenômeno da globalização nas pequenas cidades do interior do país e como novas categorias surgem como formas peculiares de constituição de identidades regionais.

1 – Considerar-se intelectual ponta-grossense, logo, ter nascido em Ponta Grossa ou residir na cidade há pelo menos 20 anos.

2 – Defender publicamente a cidade e o cidadão que nela reside há mais de 20 anos.

3 – Preferencialmente ter curso superior na Universidade Estadual de Ponta Grossa (é claro!). Entre os cursos mais necessários estão o Direito, Jornalismo e História. De preferência, curse dois deles.

4 – Falar mal de Curitiba é importante; ou que Ponta Grossa poderia ser igual ou melhor que a capital se os governadores não dessem tanta atenção àquela. Quanto a Londrina ou Maringá, elas estão muito longe no mapa e não oferecem perigo à hegemonia intelectual de Ponta Grossa.

5 – Importante: não responder aos debates públicos (em jornais, rádio e TV) que possam em algum momento colocar em risco a sua integridade intelectual ou do seu grupo. Ignorar as críticas é a melhor decisão. Como dizem os franceses: “la indifférence est quelqu’un sublime”.

6 – Mas quando não for possível calar-se, recorra aos jornais, às rádios, às TVs, e fale em nome do civismo ponta-grossense. Lembre-se de que Ponta Grossa, apesar de ter perdido há muito tempo o título de capital mundial da soja, ela ainda é Capital Cívica do Paraná — graças a Getúlio Vargas! Aliás, fale muito bem do getulismo, pois boa parte do público com mais de 70 anos vai ficar do seu lado.

7 – Esteja, obviamente, ligado a um grupo de intelectuais já com destaque, isso facilita sua inserção nesse meio tão rico e hermético. Alguns departamentos da UEPG oferecem esse recurso. Outra possibilidade é estar junto com alguns secretários ou vereadores do município que já constituíram ou buscam constituir seu “campo intelectual”.

8 – Em função do próprio contexto político da cidade, seja de esquerda. O partido não interessa, desde que apoie o governo municipal e federal sem restrições; isso é importante (e um grande passo) para que você seja chamado de intelectual por outros intelectuais.

9 – Em hipótese alguma deixe de elogiar a cidade e de lembrar a lenda da pombinha fundadora da cidade; é poético, artístico e fala um pouco da cultura romântica tardia da cidade. O intelectual ponta-grossense preza muito isso.

10 – E, por fim, se algum dia, durante uma viagem à França, Miami ou Disneylândia, você for reconhecido por outro ponta-grossense (intelectual ou não), finja não o conhecer — assim como sua cidade de origem. Para todos os efeitos, diga que se trata de um engano. Pois, lembre-se: intelectual ponta-grossense fora de Ponta Grossa não existe.

Rodrigo Czajka

é mestrando em Sociologia da Cultura na Unicamp.

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