Estrelas errantes, para as quais está
eternamente reservada a negrura das trevas.
Judas 1:13
No final do verão de 1992, W. G. Sebald empreendeu uma viagem pelo condado de Suffolk, região leste da Inglaterra. O percurso de cerca de cento e trinta quilômetros foi desvendado a pé: o escritor alemão vagueou por Lowestoft, Southwold, Walberswick, Woodbridge e outros pequenos balneários similares em suas paisagens bucólicas, praias cinzentas e edificações medievais.
Os anéis de Saturno, terceiro livro em prosa de Sebald, é uma espécie de relato híbrido dessa experiência, em uma mistura de ensaio, memórias, meditação, História e ficção. Junto à descrição da viagem, o narrador andarilho faz conexões entre os lugares vistos ao longo do caminho e eventos e personagens históricos que, embora remotos, seguem influenciando aquela região. Surgiram daí breves narrativas eruditas com temáticas tão distintas quanto a colonização do Congo Belga, a vida de Joseph Conrad e a indústria inglesa da seda. A visão de uma ponte de ferro sobre o rio Blyth, por exemplo, provocou uma detalhada digressão sobre os anos de poder da odiada imperatriz chinesa Tz’u-hsi.
Percorrer ao acaso vilarejos pouco populosos do interior britânico foi a estratégia utilizada pelo narrador para “preencher o vazio” que dele se apoderou após o término de um grande período de trabalho. O resultado foi dúbio. Se as horas de caminhadas desprovidas de rumo ocasionaram despreocupação e leveza, esse incomum senso de liberdade amplificava o horror das inúmeras vezes em que traços de destruição vindos do passado eram confrontados, em um conflito entre beleza e brutalidade.
Envoltas nessa ambigüidade, as histórias contadas por Sebald em sua brevíssima carreira literária carregam este aspecto em comum: seus personagens são seres errantes. Para eles, deslocar-se — ou tão-somente estar ou sentir-se deslocado — é um elemento fundamental para refletir sobre a existência humana e compreender o significado da memória no tempo presente. Buscando reconstruir algo que se perdeu, as peregrinações sem destino definido tentam justamente resgatar essa essência que parece estar em falta.
Um passado em silêncio
Winfried Georg Maximilian Sebald — W. G. para o mundo literário, Max para os amigos mais próximos — nasceu em 18 de maio de 1944 no extremo sul da Alemanha, em Wertach. O lugarejo, na época com cerca de mil habitantes, é conhecido como local de veraneio por seu clima aprazível nos meses quentes do ano e um resort de esportes de inverno em função da proximidade com os Alpes Bávaros.
Em uma família de muitas mulheres, convivendo com três irmãs e diversas tias, a principal referência masculina nos primeiros anos de Sebald foi seu avô materno. O pai, Georg, ingressou no Exército da República de Weimar, a Reichswehr, aos dezoito anos, em 1929. Continuou servindo nas Forças Armadas da Alemanha Nazista, rebatizada de Wehrmacht, primeiro como soldado e depois, capitão. Foi uma época de prosperidade para a família, que saiu da pobreza proveniente da grave recessão econômica para uma formidável classe média rural. Com o fim da Segunda Guerra, Georg foi preso e mantido em cativeiro na França até 1947. Ao voltar para casa, reinou o silêncio e o esquecimento sobre o período.
Um ano depois, a família mudou-se para Sonthofen, um pouco maior que a vizinha Wertach, considerada o limite meridional alemão. Em cidades próximas, Sebald iniciou seus estudos, completando o ensino secundário em 1963. Ele costumava lembrar a espiral do silêncio existente nessas escolas em relação à história do País durante o Terceiro Reich. Com efeito, até o fim de sua adolescência, praticamente nada havia sido mencionado em sala de aula até a exibição de um documentário sobre o campo de concentração Bergen-Belsen.
Dispensado do serviço militar por motivos de saúde, Sebald prestou o Abitur, exame de acesso ao ensino superior, e ingressou na Universidade de Freiburg com ênfase em literatura alemã. Graduou-se em 1965 e no ano seguinte alçou à posição de lektor na Universidade de Manchester. Iniciava assim uma estreita relação com a Inglaterra, país no qual se estabeleceu permanentemente a partir de 1970.
Em franca ascensão na vida acadêmica, Sebald assumiu uma cadeira de Alemão no departamento de estudos europeus da recém-criada Universidade de East Anglia, em Norwich. O doutorado sobre Alfred Döblin consolidou sua posição de respeito dentro da crítica literária, cimentada também por uma série de livros e estudos publicados sobre autores como Carl Sternheim, Gottfried Keller e Elias Canetti, além de ensaios que analisavam a literatura austríaca.
Transgressão de conceitos
Como em uma imitação de suas futuras obras literárias, o primeiro contato de Sebald com a escrita não-acadêmica se deu completamente por acaso. No final da década de 1980, em uma viagem a Londres, o então professor lia Der Kopf des Vitus Bering (em tradução literal, “A cabeça de Vitus Bering”), de Konrad Bayer. O livro conta com uma nota de rodapé sobre o botânico Georg Wilhelm Steller, que havia acompanhado uma expedição de Bering ao Alasca.
A nota atraiu a atenção de Sebald, cujo nome tinha as mesmas iniciais que as do botânico. Chegando à capital inglesa, ele foi ao British Museum e buscou todas as informações possíveis sobre o homem e o tema. Sabendo que não poderia escrever um ensaio acadêmico ou uma monografia a respeito de algo tão corriqueiro, embora complexo em suas peculiaridades, decidiu transformar as anotações em um poema.
O exercício decididamente privado tornou-se público em 1988 com Nach der Natur: Ein Elementargedicht (Após a natureza: Um poema elementar, ainda não lançado no Brasil). A obra é dividida em três partes. A primeira é dedicada ao pintor expressionista Matthias Grünewald; a segunda, a Steller; e a terceira, à infância do próprio Sebald. Nessa última seção do livro, o escritor expõe a relutância de seus pais em contar histórias sobre a guerra e os constantes movimentos migratórios que sucederam o período — temas que acabariam sendo recorrentes nos futuros livros.
Outra característica presente em Nach der Natur que perduraria nos trabalhos posteriores é a mescla dos gêneros textuais. Sem amarras acadêmicas, Sebald superou os limites da escrita historiográfica convencional. Assim, misturou o conteúdo de documentos com recordações do passado, interpretações pessoais com narrativas ficcionais e descrições frias com linguagens literárias.
E a primeira demonstração desse estilo em prosa foi Vertigem, lançado na Alemanha em 1990. Há um jogo de palavras já no título original, Schwindel. Gefühle. O ponto colocado entre as duas palavras divide Schwindelgefühl, alemão para “vertigem”. Sebald optou por quebrar o termo ao meio e pluralizá-lo: Schwindel, “tontura”, e Gefühle, “sentimentos”.
Em uma rara e excelente entrevista conduzida por Christopher Bigsby para o livro Writers in conversation, de 2001, Sebald reafirmou sua intenção de transgredir conceitos de gêneros em prosa a partir de Vertigem: “Eu me sentia crescentemente atraído a escrever de um jeito muito mais experimental e mudei da monografia estrita para a exploração ensaística, lidando com meus assuntos de uma maneira elíptica”.
Exatamente por isso é muito difícil classificar o tipo de literatura feita por Sebald. Nem mesmo o escritor sabia defini-la muito bem — se é que esse tipo de dúvida causasse a ele qualquer tipo de comoção. “Não era história, não era crítica literária, não era sociologia, mas era tudo isso junto ao mesmo tempo”, pontuou na conversa com Bigsby.
Escrito em primeira pessoa, Vertigem é conduzido por uma viagem do narrador — autobiográfica em muitos aspectos — com passagens por Viena, Veneza, Verona e Milão. Justapostas a ela estão lembranças das passagens de Stendahl, Casanova e Kafka por roteiros semelhantes. A única exceção é o último capítulo, o belíssimo Il Ritorno in Patria, onde o alter-ego de Sebald volta a sua cidade natal no sul da Alemanha, chamada apenas de W.
O tema central de Vertigem, e isso se torna evidente desde as primeiras páginas, é a memória. Ou ainda: a desorientação, vertigem, causada pela percepção da fragilidade dos elos que nos conectam ao passado, mesmo que esse passado ainda exerça uma força brutal no presente. É por isso que Sebald e seus personagens sentem uma ânsia constante de recapturar traços do tempo antes que eles desapareçam.
Como fazer isso? Estando em movimento — caminhar ininterruptamente, viajar de uma cidade a outra sem aparente motivo. Para Sebald, a melhor, talvez única, maneira de tentar resgatar memórias quase desintegradas pelo tempo é ensaiar suas próprias hipóteses a partir do conhecimento empírico dos lugares, dos objetos e dos seres humanos. Dessas experiências individuais surgem as mais legítimas conclusões, muito mais pessoais e menos generalizadas.
A materialização desse esforço empírico é bem representada pelo uso de enigmáticas figuras inseridas no texto. Antigos cartões postais em preto e branco, plantas baixas de castelos, desenhos milenares e muitas fotografias tiradas pelo próprio Sebald não só ilustram passagens como também são um conteúdo que se sustenta por si só. Em um âmbito quase metafísico, dão a entender que o passado vive em um mundo particular. Elas se tornariam marca registrada da obra do escritor, sendo utilizadas também no restante de seus livros.
La terre maudite
O final de Vertigem, com o “retorno à pátria”, mostrou-se uma prévia do que estaria no centro de seu próximo livro, Os emigrantes (cujo título original é Die Ausgewanderten, ao pé da letra “aqueles que partiram a vagar”). Publicado em 1992, trata-se da primeira obra literária de Sebald traduzida para o inglês[i] e a primeira a chegar ao Brasil, dez anos depois. A identidade e o sentimento de pertencimento dos cidadãos de uma nação onde floresceu a face mais brutal do horror são representados, aqui, por quatro emigrantes alemães.
As histórias dessas quatro pessoas retratadas no livro não têm relação direta entre si, mas guardam algumas semelhanças. Em meio à Segunda Guerra, Paul Bereyter era professor de uma pequena escola no interior da Alemanha. Por ser “um-quarto judeu e três-quartos ariano”, sofreu perseguição por parte do vilarejo onde morava — claramente inspirado em Sonthofen e chamado apenas de S. O elemento trágico de estar em um lugar e não sentir confortável com sua própria condição é o mote dessa e das outras narrativas da obra.
Embora todos os personagens possuam o mesmo espírito errante de Sebald, Ambros Adelwarth, tema do terceiro capítulo, é aquele que melhor simboliza essa inquietação. Tio-avô do escritor, Adelwarth saiu da Alemanha aos treze anos e passou a vida sem conseguir se estabilizar em lugar algum em que se sinta familiar. Eventualmente, tornou-se mordomo — e amante, é provável — de um excêntrico judeu nova-iorquino, Cosmo Solomon, com o qual viajou por todo o mundo.
Em uma dessas viagens, ao caminhar pela devastada e decadente Jerusalém, Adelwarth busca vestígios do passado da Terra Prometida. Em seu diário, no entanto, anota: “On dirait que c’est la terre maudite…”. É a impressão cada vez mais fortalecida de que a história de um lugar vai sendo engolida pelo tempo; os rastros e as cicatrizes das pessoas que viveram ali se perdem dia após dia, hora após hora. O esforço para retardar esse processo é, na maioria das vezes, inútil.
A dificuldade em lidar com o sentimento de deslocamento, com a falta de pertencimento a um país e com os fantasmas da memória trouxe a Adelwarth uma profunda melancolia — algo compartilhado pelos outros emigrantes do livro, todos depressivos, alguns suicidas. Ao fim da vida, quando submetido a tratamentos cruéis e rudimentares de eletro-choque, ele parecia fazê-lo com certa conformidade. Morreria na clínica psicológica onde se internou por livre iniciativa.
Há, no entanto, um quinto emigrante tão notável quanto os outros: o próprio narrador, novamente um alter-ego de Sebald que repetiu sua jornada rumo à Grã-Bretanha. Na vida real, o escritor também tinha dificuldade em saber em qual lugar se sentia mais confortável, a qual país sua alma pertencia. Os anos vividos na Inglaterra não foram capazes de torná-la um lar verdadeiro; por outro lado, propostas de universidades alemãs eram recusadas sistematicamente, em um indicativo de que também em sua terra natal se sentia estranho. Com certo grau de ironia, ele costumava afirmar que o local perfeito para se fixar seria em “um quarto de hotel da Suíça”.
Todas as histórias contadas em Os emigrantes vieram ao conhecimento do narrador através de errâncias. A amizade com Max Ferber, do último e mais tocante capítulo, teve início quando ele caminhava pelas ruas de Manchester, ainda na década de 1960, e entrou ao acaso em seu estúdio de pintura. Essa característica se reflete também na maneira em que as narrativas são contadas. Até chegar à história do personagem principal, diversos desdobramentos acontecem; pessoas sem expressão no início do conto passam a ter papel essencial em seu fim, bem como fatos teoricamente ignoráveis ganham uma dimensão extraordinária. A sensação para o leitor é parecida com a de uma perambulação ociosa, onde os detalhes percebidos ao longo do trajeto são talvez mais sublimes e relevantes que o destino final.
Emergência da memória
A tradução de Os emigrantes para a língua inglesa, pouco depois da publicação do já mencionado Os anéis de Saturno, trouxe amplo reconhecimento a Sebald. Susan Sontag dizia que o escritor alemão era uma das poucas respostas possíveis para quem buscava grandeza literária em autores do fim do século 20. Escritores e críticos como Javier Marías, Colin Walters, A. S. Byatt e James Wood também teceram elogios ao livro.
Mesmo assim, a grande obra de Sebald ainda estava por vir. Em 2001, Austerlitz surge como seu livro que mais se aproxima do conceito clássico de romance, com uma única história principal contada ao longo de quatrocentas páginas. Não se trata, no entanto, de um romance convencional: recursos estilísticos como parágrafos ou aspas para indicar a fala de um personagem praticamente não são utilizados. Da mesma forma, continua igual a indefinição da linha que separa ficção, história real e memória.
Que o diga o narrador da história — novamente alter-ego de Sebald, habitual andarilho e viajante. Já nas primeiras linhas do livro, essa condição fica expressa: no final da década de 1960, ele viajava repetidamente da Inglaterra para a Bélgica, “em parte para fins de estudo, em parte por razões que nunca estiveram muito claras”. Em uma dessas incursões pela Antuérpia, conhece o historiador de arquitetura Jacques Austerlitz.
O homem que carrega no nome o título do livro só descobriu sua verdadeira identidade aos 15 anos. Até então, chamava-se Dafydd Elias e vivia a ilusão de ser filho do pastor calvinista de uma pequena comunidade do País de Gales. A realidade, por outro lado, era mais trágica: nascido em Praga no despertar da perseguição nazista, Austerlitz embarcou em um Kindertransport — trem que enviou cerca de dez mil crianças para adoção no Reino Unido entre 1938 e 1939, solução encontrada por muitas famílias judaicas para livrá-las do gueto ou dos campos de concentração.
Durante anos, essa descoberta o atormenta. Austerlitz foge de seu passado e de qualquer vestígio que possa retomá-lo. Não por acaso, limita os estudos sobre arquitetura ao final do século 19, recusando-se a analisar qualquer aspecto posterior ao período. Os fantasmas da história acabam exercendo nele profunda influência, tornando-o melancólico, nervoso e incapaz de se relacionar com outras pessoas.
Pouco a pouco, ele encontra a coragem para fazer emergir sua memória e descobrir com mais profundidade sua verdadeira identidade. Essa bravura transforma-se em obsessão. Austerlitz não apenas deixa de ignorar o passado; agora, ele também vai ao seu encontro. Assim, o caminho oposto da viagem de ida à Inglaterra, realizada aos cinco anos de idade, seria repetido inúmeras vezes na vida adulta.
Novamente, o vagar por ruas vazias e recônditas ganha espaço na obra de Sebald. Austerlitz entende que só conseguirá reencontrar traços do passado se seguir seu próprio caminho. Nada será revelado sobre seus pais, possivelmente mortos ainda durante a guerra, se recorrer aos dados oficiais e a roteiros pré-estabelecidos. Terá de desenterrar memórias a partir de resquícios efêmeros do passado — uma foto, um recorte de jornal, um brinquedo, um objeto de decoração — e dar sentido a eles.
Surge aí uma das mais comoventes cenas do livro, e uma singela contribuição para a beleza da literatura no início deste século. Em 1944, o departamento de propaganda nazista realiza uma filmagem no gueto de Theresienstadt — cujas condições foram melhoradas artificialmente para a visita de uma comissão de oficiais da Cruz Vermelha. Conforme fora descoberto, a mãe de Austerlitz, Agáta, havia sido enviada para lá alguns anos antes. Ao obter uma cópia do documentário, o historiador assiste incessantemente ao vídeo em busca da imagem de uma mulher de feições semelhantes às suas. Presta atenção a cada detalhe, a cada rosto, a cada expressão. Por fim, em alguns poucos frames, encontra uma pessoa quase desfocada no canto superior esquerdo da tela. Ela corresponde à figura materna que, havia anos, apenas imaginava.
A esta peça tão frágil — um trecho em má qualidade de um filme gravado há décadas mostrando alguém que pode ou não ser sua mãe —, Austerlitz atribui uma fenomenal importância, capaz de se sobrepor aos anos em que sua existência foi submetida a uma mentira.
Retorno
Na terminologia astronômica, estrelas errantes são estrelas sem rumo, ejetadas de suas galáxias-mãe por terem perdido o vínculo gravitacional. Algumas vezes, isso acontece pelo impulso recebido por uma galáxia satélite que passou através do pericentro de sua órbita. Em outras ocasiões, o corpo celeste se desgarra por possuir velocidade superior à de escape de seu local de origem. Mesmo assim, muitas delas permanecem energeticamente ligadas ao seu sistema galáctico, eventualmente retornando a ele.
Em um ensaio sobre Robert Walser, Sebald disse que o escritor suíço em muito se assemelhava ao avô — o mesmo que, enquanto o pai rumava à guerra, tornou-se uma referência em sua vida. E uma dessas características comuns era o interesse por longas jornadas a pé, não como uma forma de exercício, mas como um momento de reflexão e de saudável solidão.
É muito provável que o espírito errante de Sebald tenha sido influenciado, em algum nível, pela proximidade com o avô. O que sua obra literária transparece, no entanto, é que a necessidade do deslocamento é sobretudo o resultado de sentir-se deslocado tanto fisicamente — na Alemanha natal, na enevoada costa inglesa, em uma viagem pelo Oriente Médio — quanto espiritualmente — nos fantasmas do passado e nas armadilhas da memória.
Assim como Jacques Austerlitz, Sebald fugia dos traumas que relegaram sua identidade e lugar de origem. Não por acaso, optou por assinar o nome literário com as iniciais W. G., buscando esquecer que Winfried fazia parte de uma lista de nomes aprovados pelo regime nazista e que Georg era uma homenagem ao pai, homem que servia ao exército de um Estado que matou milhões de inocentes. Da mesma maneira, referia-se a Wertach como W. e a Sonthofen como S., vilarejos sem participação decisiva na guerra, mas que ainda exalavam a essência do mal que acometeu a Alemanha no período.
Os quatro livros em prosa que compõem sua obra, no entanto, constituem um retorno de Sebald ao passado. Tal qual uma estrela errante ainda ligada à própria galáxia, o escritor se curvou diante do constante diálogo travado entre o ontem e o hoje. Viu-se incapaz de ignorar as aflições da história, posto que elas seguem se materializando nas mais diferentes formas ainda agora, no presente.
Com o vagar dos personagens, Sebald explorou essa questão de maneira empírica. Transformou-os em testemunhas de lugares, e os lugares em testemunhas do passado. Ao vasculharem ruínas, mansões, campos e praias abandonadas, vasculharam também lembranças, medos e desejos de pessoas, resgatando-os antes que o tempo os faça desaparecer.
Há uma triste coincidência — diante de tantas que permeiam suas histórias — entre a temática do resgate e a prematura morte de W. G. Sebald, em dezembro de 2001. A breve e extraordinária passagem do escritor pela literatura tornou-se um instrumento para recuperar, para além da vida, sua própria existência e memória.
E mesmo envolvendo esse acentuado componente autobiográfico, repleto de viagens e expedições erráticas, seus livros contêm a universalidade peculiar da arte mais nobre. Afinal, a obra de Sebald é também um depoimento perene das reações humanas diante de experiências traumáticas e de suas conseqüências inevitáveis. É, portanto, o olhar resignado do homem para tudo aquilo que está além de seu controle — como um simples peregrino perdido na magnitude do mundo que o cerca.