Estreia razoável

Contos de João Alphonsus têm humor e leveza, mas não alcançam ser textos imprescindíveis da literatura brasileira
João Alphonsus, autor de “Galinha cega”
31/10/2016

João Alphonsus provém de conhecida família literária, na qual despontam seu pai, o simbolista Alphonsus de Guimaraens, e, tio-avô deste, Bernardo Guimarães, exaltado romântico, autor de O seminarista.

Seguindo a tradição familiar, João Alphonsus mostrou-se ativo militante da causa modernista em Minas Gerais: participou — ao lado de Carlos Drummond de Andrade, Martins de Almeida, Emílio Moura, Pedro Nava, Gregoriano Canedo e Abgar Renault — do grupo ligado ao periódico A Revista, cujos três números foram publicados entre 1925 e 1926.

Seu livro de estreia, Galinha cega, de 1931, reunião de quatro contos, oferece a síntese da breve carreira, encerrada aos 43 anos, que nos legou dois romances premiados pela Academia Brasileira de Letras, Totônio Pacheco e Rola-Moça, além de poemas e os volumes Pesca da baleia e Eis a noite!, nos quais o escritor exercita o conto, gênero que, segundo o consenso da crítica, dominou.

Sartrianice
O último conto de Galinha cegaO homem na sombra ou a sombra no homem — é o mais fraco. A narrativa inicia com um diálogo humorístico, acolhedor, entre o protagonista — Ricardo, revisor do jornal sem importância, estudante de medicina e candidato a poetastro — e o redator-chefe, poetastro notável, bem definido pelo irônico narrador como “poeta consagrado por geração e meia de sofredores”. O tom da abertura, entretanto, não se mantém, e logo resta apenas o personagem que se entrega, a partir da morte de uma desconhecida, a imaginosa soturnidade, experimentando ciclotimia própria dos adolescentes.

O narrador divaga em inúmeros trechos, suas digressões nada acrescentam à história, enquanto os poucos fatos — paixonite pela prostituta, gastos irresponsáveis, noites ao relento, sucessivos vexames — confirmam a crise existencial sartriana, ou seja, enfadonha.

Não surpreende que o narrador considere sua história uma “odisseia obscura” — o que confirma a visão distorcida dos modernistas, cultuada até hoje, prontos a encontrar aventura numa sucessão de errinhos suburbanos, destituídos de heroísmo. O final, debochado, em que um jato de urina acorda o jovem, reconduz o leitor à qualidade do início, o que só amplia nossa frustração.

“Eu apodrecerei quase sem feder”
Godofredo e a virgem engana de maneira habilidosa. As primeiras páginas querem nos convencer de que o tema central é o amor não consumado entre Godofredo e Carmita, morta prematuramente. Para tanto, o narrador constrói o envolvimento passional do jovem que, frente à morte da amada, deseja oferecer-se, para sempre, em holocausto.

O leitor desatento se surpreenderá com a mudança, elaborada desde a agonia de Carmita, que ocorre no terço final da narrativa. Terêncio, sogro de Godofredo, e seu “ronco metódico” crescem, avolumam-se, sobranceando a paixão infeliz. Quando o leitor se dá conta, a personalidade fria de Terêncio controla o enredo. Na verdade, o conto dialoga, de forma crítica, com o Romantismo, assemelha-se a uma paródia do ultrarromantismo, quiçá uma resposta ao antepassado de João Alphonsus, pois à mulher cuja “beleza não apodrecerá” — “Godô, eu apodrecerei quase sem feder, eu juro, eu juro…”, Carmita sussurra no caixão, eco da morbidez quase necrofílica de O seminarista — o narrador contrapõe o pai calculista, “bólido lento e pesado”, de presença “incômoda e supérflua”, capaz de contemplar “sucumbido” o cadáver e, minutos depois, entabular agradável conversa sobre política.

As mesquinhezas do cotidiano se sobrepõem, assim, ao amor, à saudade, à tristeza da perda. Para Terêncio, o que importa é arrumar alguém disposto a pagar as contas — para Godofredo, o desalento nasce do fato de não vencer a libido. Os dois opositores resumem-se a seus instintos no final, mas tudo é apresentado de forma sutil, inteligente, até o fecho que o próprio narrador anuncia como “anedótico e necessário”, restando a Terêncio subir “solenemente pela Mantiqueira do seu desprezo metódico e bem dosado”.

Gracejo pirotécnico
O que avulta em Oxicianureto de Mercúrio é a macroestrutura, apoiada em duas linhas de tensão: a raiva, verdadeiro ódio concentrado do “homem de boné”, e a história da tentativa de suicídio de Amâncio. Esta apresenta o que poderíamos chamar de subinterpolação, pois sua eficiência se deve, em grande parte, às analepses — na verdade, analepses externas, que ultrapassam o tempo em que a narrativa se desenvolve, nas quais surge devotada figura materna, contraponto perfeito ao mundo de bebedeiras e frustrações em que os dois personagens centrais se desesperam.

O final, uma pena, tem inesperada pretensão tragicômica, que, ao destoar do conjunto, afunda a narrativa. Nem sempre o humor dá resultado, concluímos, principalmente quando o recurso apresenta um corte oswaldiano, ou seja, mero gracejo pirotécnico, apendículo desnecessário.

Absoluta bondade
Galinha cega, que dá título ao livro, divide com Godofredo e a virgem o protagonismo da coletânea. O início é exemplo de concisão, de boa escolha vocabular e uso correto dos adjetivos:

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:

— Frangos BONS E BARATOS!

Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. […]

Minha única resistência relaciona-se ao advérbio, pois duvido de sua necessidade e eficácia — bastava o adjetivo “molengo”. Aliás, trata-se do motivo pelo qual a narrativa coxeia. Veja-se, por exemplo, nestes dois parágrafos, como o advérbio nada acrescenta à psicologia galinácea — ou, analisando sob perspectiva diversa, à antropomorfização da personagem:

Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha… Sujeito cacete.

O galo — có, có, có — có, có, có — rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo.

O advérbio, nos dois casos, desempenha função semelhante à da linguagem galiforme do segundo parágrafo: mera redundância.

Outro trecho ajuda a esclarecer minha crítica:

Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. […]

Se “infinitamente” amplia a cegueira a que a galinha está condenada, “inexplicavelmente” desempenha função apenas retórica, pois confusão e perplexidade permanecem visíveis, concretas, se retiramos o advérbio.

Aqui e ali, também incomoda o relativo excesso de adjetivos:

Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia o comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.

O parágrafo delineia, com perfeição, o estado deplorável da personagem — mas o autor, incontido, desequilibra o trecho com o diminutivo e os adjetivos finais, supérfluos, dispensáveis.

Mas há trechos perfeitos. O comprador da galinha surge como figura quase monstruosa — “[…] Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme” —, reforçada pela feliz, inusitada escolha do verbo “cavar”.

A narrativa se desenvolve tendo como eixo o drama crescente da galinha, ao qual corresponderá, da parte do seu novo proprietário, ternura desmedida. A paciência que este devota à esposa indiferente torna-se bondade incondicional quando se trata da ave, a quem ele não teme defender nem mesmo ao preço de passar a noite no xadrez.

O caráter generoso, nobre, desse homem cava também a alma do leitor, que se vê preso no ilimitado carinho pelos bichos.

O final — pleno de humor e leveza — confirma as qualidades de João Alphonsus, mas não elimina a impressão de uma estreia apenas razoável. De qualquer forma, é impossível não lamentar que o autor tenha vivido tão pouco, da mesma forma que Antônio de Alcântara Machado, enquanto, tremenda injustiça, Oswald de Andrade pôde repetir suas galimatias até se tornar um sexagenário.

NOTA

Após um ano sabático, o crítico Rodrigo Gurgel retoma a série, iniciada na edição 122 do Rascunho (junho de 2010), em que escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala.

João Alphonsus
Nasceu em Conceição do Mato Dentro (MG), em 1901, e faleceu em Belo Horizonte (MG), em 1944. Fez os estudos primários em Mariana, onde cursou, até o terceiro ano, o Seminário Arquiepiscopal. Transferiu-se para Belo Horizonte em 1918, ano em que ingressa no serviço público. Bacharelou-se em 1930 pela Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Atuou na imprensa mineira até ser nomeado promotor de Justiça e, mais tarde, auxiliar jurídico da Procuradoria do Estado. Sua obra foi reunida em Contos e novelas (1977), edição do Instituto Nacional do Livro.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho