Estranhos seres noturnos

Em “A feia noite”, Simone Campos abusa das metáforas e, com isso, pode perder muitos leitores entre uma página e outra
Simone Campos, autora de “A feia noite”
01/06/2007

Há alguns livros que são difíceis de avaliar. Não sabemos se são bons ou ruins, mesmo que tenhamos ido até o seu fim, e com vontade. Claro, há alguns tipos de leitores compulsivos que vão ao fim de qualquer livro, independentemente de sua qualidade. Mas há outros livros que requerem a sua leitura completa. Seja porque esperamos que ao longo das páginas a linguagem intrincada fique um pouco mais clara, menos truncada, seja porque esperamos que os protagonistas tomem alguma decisão para romper a imobilidade, que jogue a filosofia de lado para que aconteça alguma coisa de verdade. Pode até ser que no segundo caso, consideremos o livro um bom trabalho, pois, afinal, ficamos presos pelo roteiro. No primeiro, podemos achar que o autor quer bancar o vanguardista moderninho e mascarar a falta de roteiro com um linguajar estranho e pretensamente transgressor.

E quando as duas características se juntam em um mesmo trabalho? Aí, como diria o dono do Armazém Santana, em Curitiba, “lascô”. A avaliação fica difícil, dizer o quê, se nem mesmo entendemos direito o livro? Esta é a minha sensação ao terminar a leitura de A feia noite, de Simone Campos. É um bom livro? Não sei, a linguagem é meio estranha, mas o enredo parece interessante, pelo menos a parte que pude entender a partir de seu ritmo não convencional, cheio de metáforas e figuras de imagem que não foram de fácil compreensão.

A história fala de dois personagens principais, Francisco, um freelancer assessor de políticos, e Maria Luiza, prostituta. Ambos se encontram em uma noite do Rio de Janeiro, e Francisco, ainda se refazendo do fora que levou de Amanda, sua ex-esposa, acaba levando Maria Luiza para casa. No total, a autora narra 15 noites da vida conjunta desse estranho e inusitado casal. Noites porque Maria Luiza se recusa a viver de dia, está sempre fugindo da luz do sol.

Houve o momento em que eu julguei audível o barulho do silêncio, as nuvens paradas, diluindo-se sobre a minha cabeça. Eu não me perderia.

A noite me surpreendeu. Invadiu meu corpo. Tudo no seu devido lugar, então o susto. O máximo que pode me acontecer e morrer. Do chão não passa. Importa? Se chove e as pessoas são intranqüilas, se o dia é injustiça e intemperança.

Degusto aquilo que me oferecem sem pensar: é a noite. Não há como se ver os pratos de um banquete no escuro. O que é escuro se oferece ao tato; e para tatear, devemos nos aproximar.

(…)

À noite todos os gatos são pardos. À noite não tem cabresto. Nela eu não seria hors-concours.

Francisco, por sua vez, é um homem que não sabe direito por que vive, e nem ao menos sabe por que levou Maria Luiza para sua casa. Ao longo das noites, ele vai ficando obcecado, afinal, como é que pode ele estar morando com uma ¡puta!, como se refere a Maria Luiza tantas vezes no livro? E como pode ele nem mesmo transar com esta mulher? Não, ele não é homossexual, apenas um homem grilado com tantas coisas que lhe aconteceram e que ele não tem coragem de resolver.

O problema. O que fazer após encontrar a borboleta rara (ainda no seu ombro)?

Tinha-a. Como tê-la ainda?

Tinha listado: rezar juntos, escrever juntos, se drogar juntos, se matar juntos ou matar juntos. Não sabe se distorção sua ou da época, mas sexo parece a única opção viável. Que aliás é inviável. Mesmo que faça direito, tomando aquele rosto e sentindo os cachos quentes atrás da nuca. Destruiria a própria nobreza. Ela voltaria a chafurdar.

Um tempo torto que exige a demolição dos atóis em nome das novas rotas de comércio. Serenidade para aceitar o que não posso mudar. Foda-se eu e minha longanimidade, pensa. Fodo-me. O problema é ela, se não seria envolvida, devolvida ao que era antes. E ele não aceita este tipo de pureza. Mas ela não tem rodinhas. Tem que voltar a correr. Senão cai.

O conflito entre o que quer cada um do outro permeia o livro, ao mesmo tempo em que a tensão é dada pelas limitações de cada personagem em conseguir se entregar ao outro. No entanto, a autora lança mão de uma linguagem não tão direta para narrar sua história. As frases são curtas, ríspidas até. Se em alguns momentos esta característica dá uma dinâmica interessante ao livro, em outros nos faz perder o fio da meada com tantas intromissões. É mais ou menos como ler um livro de outra língua não sendo totalmente fluente. Você compreende o texto pelo sentido geral, mas não aprecia cada palavra, o estilo do autor, as nuances que ele imprime ao seu trabalho.

Como já disse, Simone Campos utiliza com abundância figuras retóricas e metáforas, e aí acaba sendo um gosto pessoal. Eu prefiro histórias bem contadas e com uma linguagem clara, sem firulas. Gosto de roteiros, não de exercícios de linguagem. Mas confesso que pode ser uma limitação pessoal e que com certeza há muitas pessoas que apreciam este estilo e gostarão bastante do trabalho de Simone. Afinal, a história é interessante, a autora consegue despertar em nós uma curiosidade grande sobre o destino dos dois protagonistas, que vão em um crescendo até a conclusão do livro, que deixa ainda muitas pontas em aberto. Mas acabei ficando perdido no meio com a linguagem não tão clara.

Como curiosidade, ao final do livro, a autora aponta para um blog — afeianoite.blogspot.com. Ao abrir a página, descobrimos ali o blog de Maria Luiza, a protagonista do livro. A feia noite, o livro, aparece logo ao lado esquerdo, e Maria Luiza diz que este é o livro sobre ela. A serem verdadeiras as datas do blog, o último post é de 2002. No entanto, pouco importa a verdade. Ali, temos um relato de alguém que afirma que entre a terapia, a ioga e o blogar escolheu a terceira opção, por ser mais barata e fácil. É uma chance de penetrar no passado da protagonista (será um alter ego da autora? Não são todos os personagens alter egos de seus criadores?) e enriquecer (ou esclarecer) alguns pontos de A feia noite que tenham ficado para trás.

A feia noite
Simone Campos
7Letras
104 págs.
Simone Campos
Nasceu em 1983, no Rio de Janeiro. Aos 17 anos, publicou o romance No shopping. Ela levou cinco anos escrevendo A feia noite.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho