Livros são como animais. É isso que disse Gonçalo M. Tavares em uma entrevista para a Saraiva. O escritor angolano falou que costuma diferenciar obras da mesma forma que percebe diferentes espécies. Dessa forma, não dá para dizer que uma girafa é melhor que um tigre, mas que um animal é mais alto, outro é mais rápido. Por isso, cada um dos livros exige do leitor um ritmo e uma postura de fruição diferentes.
Tal definição serve bem ao autor, já que Tavares tem uma obra diversa e que permeia vários gêneros. Ele já escreveu textos classificados como poesia, ensaio, romance, peça teatral, epopeia, etc. É um autor difícil de classificar, inclusive pelas misturas que realiza. Serve como exemplo sua tetralogia sobre maldade e violência, chamada O reino. Em outra situação, escreveu uma série intitulada O bairro, em que prestou homenagens a escritores e artistas. Dentro de si, Tavares tem um zoológico inteiro.
Em O torcicologologista, excelência, livro que chegou no Brasil pela Dublinense em 2017, podemos visualizar algum animal ágil e sorrateiro, como uma raposa ou um gato, que seja falante, abarcando em si a ideia do absurdo e da acidez do livro. Mas talvez o animal que sirva de metáfora para tratar dos dois livros da série Mitologias, A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado e Cinco meninos, cinco ratos, seja o Avestruz.
Em A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado, a Revolução está acontecendo e é liderada pelo Homem-Mais-Alto, que percorre a cidade executando todos aqueles que tremem. Ao mesmo tempo, Cinco Meninos, filhos do czar Nicolau, fogem e se perdem na Casa das Máquinas que guiam a História da humanidade; A Mulher-Sem-Cabeça procura seus três filhos; O Homem-do-Mau-Olhado se esforça para não amaldiçoar ninguém com seu olhar maldito; e Ber-lim, o louco com o nome dividido como a cidade em que vive, viaja a cidade com o Dr. Charcot servindo como cobaia de seus experimentos. Em diversos momentos, todas essas histórias se cruzam de alguma forma.
Em Cinco meninos, cinco ratos, o segundo livro da série, muitos dos personagens já são conhecidos. No entanto, não se trata de uma sequência. A narrativa lembra aquelas figuras de narrativas orais como Pedro Malazartes ou Nasrudin, que surgem em diversas histórias, mas que não são linearmente ligadas. São arquétipos que se mantêm, mas os cegos continuam enxergando e os pais nunca tiveram filhos. Dessa vez os cinco meninos estão perdidos na floresta e, nessa jornada de achar-se ou perder-se, eles encontram personagens como o Homem-Com-a-Boca-Aberta, o Homem-do-Mau-Olhado, o Caçador, a Avestruz, o Gigante e o terrível e violento Moscovo.
Parece que é dessa estruturação arquetípica e das ligações com um tipo de narrativa oral que surge a ideia de nomear essas narrativas sob o título de Mitologias. Por isso, surge no livro explicações e releituras de algumas situações históricas tanto no âmbito específico, como uma visão da Revolução Russa ou uma explicação para a divisão da cidade de Berlim, como de casos mais gerais, visto no caso da Máquina da História ou a Locomotiva do Progresso. Apesar desse pé nas alegorias históricas, Tavares não abandona o nonsense que lhe é característico.
Avestruz
A escolha do animal não é aleatória. Em Animalescos, publicado pela Dublinense, o autor já se aproximou dele uma vez, comentando sua falta de sentido: “a Avestruz é um animal que a mitologia pôs a andar de cabeça debaixo do solo, como se fosse maníaca, como se a Avestruz fosse um animal instalado no HOSPÍCIO DOS ANIMAIS, ficou louca da cabeça e agora anda com essa parte louca do seu corpo que é a cabeça, anda com ela debaixo do solo”.
Esse é um dos elementos que liga o animal às duas narrativas: a falta de sentido. Em primeiro lugar, a falta de sentido surge no absurdo de Tavares. Esse nonsense surge por diversos motivos, seja só pelo efeito narrativo, como no começo do primeiro livro, quando a Mulher-Sem-Cabeça passa a procurar seus filhos pelo quintal como uma brincadeira de cabra-cega, já que não enxerga, mas grita e procura escutar o Filho-Mais-Velho, o Filho-Mais-Novo e o Filho-do-Meio.
Mas ele também pode surgir aliado a uma visão política, como na história do aniversário de 18 anos de Moscovo, em Cinco meninos, cinco ratos, que recebe uma arma carregada e, vendado, deve matar alguns de seus convidados — de maneira aleatória. Esse absurdo, no entanto, às vezes estica-se e dá lugar a uma insanidade narrativa, em que é possível perder-se no meio da trama, sem saber ao certo o que se faz quando se lê. Nesses momentos, o “avestruz literário” poderia ser facilmente substituído por um ornitorrinco alado.
Mas, por fim, a falta de sentido também aparece aliada à loucura, elemento tão presente no livro. Não são poucos os que ficam loucos ou que se debruçam sobre a falta de sanidade. Ber-lim, o Homem-com-a-Boca-Aberta, os doutores, os manicômios, as praças. A presença da loucura revela-se, geralmente, ligada a outras duas características dadas ao Avestruz por Tavares: a Voracidade e a Velocidade.
Em primeiro lugar, o Avestruz é um animal rápido, tão veloz quanto a História e o Progresso. Calvino, uma das inspirações de Tavares, diz que “o século da motorização impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem”. O escritor angolano representa essa “velocidade da máquina” e a importância do progresso. Não é à toa que o cinema aparece como um importante elemento de transformação e deslumbramento trazido pelo progresso histórico — tão relevante que até a Mulher-sem-Cabeça, sem poder enxergar, quer assistir aos filmes.
Além disso, dois elementos desse avanço científico, em conjunto, deixam loucos os homens (sim, os homens): a Locomotiva e a Velocidade. Em ambos os livros, a Locomotiva aparece como um transporte com destino incerto. Alguns o tomam pelo prazer de chegar mais rápido ao destino, ainda que não se possa ter certeza de qual será. No entanto, o local de chegada é o menor dos problemas de seus passageiros, já que este progresso desnorteado é pago com a sanidade dos que nele entram. É por isso que Berlim, ao sair da grande invenção revolucionária que é o trem, tornou-se Ber-lim, o homem que anda com um mapa como chapéu e tem um nome dividido, feito sua cidade.
Junta-se à Velocidade e ao Absurdo, a Voracidade do Avestruz. Sua violência pode não ser óbvia num primeiro momento. Tavares também escreve sobre isso em A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado. Em certo momento, a Mulher-Ruiva está presa na teia de Aranha e a Aranha prepara-se para devorá-la, vagarosamente. A Mulher, receosa com o aracnídeo monstruoso que a prende, não nota a aproximação do Avestruz em suas costas e, por isso, não sente quando o animal perfura seu crânio pela nuca e devora seu cérebro.
Em Cinco meninos, cinco ratos, a figura do Avestruz é retomada, mas como um animal ainda mais feroz, que devora cérebros e abre crânios com muito mais apetite, sem precisar de aproximações furtivas. É dessa mesma forma que a Voracidade aparece e marca as duas narrativas.
No primeiro livro, temos uma violência mais discreta e organizada, que segue a figura de uma Revolução e seu líder, mais preocupado com as Máquinas da História do que com pequenas crianças. Sua necessidade de matar quem treme é neutra, objetiva: não mata por prazer, mas para fortalecer sua Revolução. No entanto, o segundo livro traz cenas mais viscerais, onde a violência é quase um prazer e a execução e a tortura são atos realizados para atender caprichos, principalmente os de Moscovo.
É no entrelaçamento dessa violência com a velocidade e as diversas facetas da falta de sentido que o escritor monta sua base para estruturar o mundo mitológico dos dois livros, onde o real, o imaginário, as alegorias históricas e de outros mitos, como da Medusa ou do Minotauro, e seus arquétipos, apresentam um tempo e mundo oníricos, confusos. Por isso, é necessário lembrar que, para ler esse livro, é preciso estar disposto a contemplar um avestruz e suas coreografias estranhas.