(Normalmente era nas quintas-feiras. Ela arrumava as sacolas, colocava a roupa de estilo safári, passava batom, penteava os cabelos ruivos e esperava. Gostava de ficar bonita antes do início de mais uma temporada em uma casa que não era a dela. Não que ela não tivesse onde morar. Longe disso. Havia inclusive um apartamento em seu nome, ocupado pelo irmão mais velho, que até pagava o condomínio — quando podia. Mas aquela espécie de rodízio pelas casas das quatro filhas era o que dava cor a sua vida, nos últimos anos.
Depois que se separou do homem com quem viveu por 30 anos, foi morar com a filha caçula. Tinha um quarto só dela. Ali, manteve a cama de madeira escura e o colchão cravado por dois vales formados pelo distanciamento dos corpos, dela e do marido, nos 20 anos anteriores à separação. As marcas na espuma eram, para a netarada, uma espécie de parque de diversões: uma minúscula montanha-russa, um camelo, uma trincheira. Para a vó, representavam a solidão, a ausência, a falta de amor. A cicatriz de um casamento que existiu, com amor dos dois lados, somente por alguns poucos anos.
Quando percebeu que não havia mais ninguém do outro lado da trincheira, decidiu-se pelo rodízio. As filhas gostavam da companhia da mãe, é claro. Os genros, na maior parte das vezes, não se opunham à idéia de abrigá-la no sofá. Mas os que se divertiam mesmo eram os netos. A vó chegava sempre cheia de histórias divertidas. A gurizada ficava hipnotizada com a forma como aquela mulher contava as peripécias de quando era ela também uma menina de tranças, correndo pelos corredores do casarão sempre cheio de gente ou fazendo teatro.)
O livro de estréia do mineiro Marcílio França Castro, A casa dos outros, me pegou de jeito. Eu não pensava na vó (a cola que manteve nossa família unida) e em como ela chegava de surpresa para uma temporada lá em casa, havia muito tempo. Recordar as tardes que passava ao redor da mesa do café escutando as histórias que ela contava (e contava pelo menos outras duas vezes, a pedido da piazada) me encantou na tarde chuvosa e baforenta que escolhi para ler aqueles dez contos.
Na história que dá nome ao livro, Castro nos apresenta a tio Jairo, um homem que deixou a vida passar, não casou, não deixou descendentes. Ficou preso no que chamou de “determinação genética, um surto que ataca certas gerações. O efeito disso, você sabe, é a solidão.” Jairo chega, sem muita explicação, na casa do irmão Mariano. Ali, pede pouso por um tempo. E vai ficando. E vai contando histórias, e vai lembrando de um tempo coberto de poeira que, um dia, já fez sentido. Luís, o sobrinho jornalista que trabalha na assessoria de imprensa de uma repartição pública e vê, dia após dia, sua pretensão literária indo para o brejo, foi quem mais tirou proveito da estadia do velho. O serviço burocrático — eu sei — é assassino da criatividade e do estilo. Mas a chegada inesperada daquele homem, sempre muito prodigioso com as palavras, acabou por resgatar o sonho de escrever sobre a infância, sobre a cidade do interior em que boa parte da família morava e ele visitava nas férias. O tio parecia a peça deslocada de um quebra-cabeças. Não pertencia àquela casa, àquela história. Mas ficava tão agradecido por poder estar ali! Foi então que Luís percebeu (e eu também): para tio Jairo, estar na casa do irmão era a chance de se agarrar ao fio — mesmo transparente, feito o de uma teia de aranha — que o conduziria novamente a um lugar e a um tempo que estavam prestes a desaparecer.
Sonho alheio
Personagens de outros contos de Castro também são peças que não encaixam, que estão fora de seus ambientes. Não pertencem a um lugar ou a alguém. Estão na casa alheia. Em O círculo, por exemplo, um homem vai parar, não se sabe ao certo como, no Círculo Polar. É um estranho naquela brancura eterna. Ali, os sonhos são a prova da genealogia das famílias. São hereditários, como a cor do cabelo ou dos olhos.
Lorz, filho de Z., sonha-se em uma ponte sobre um rio. Se avança para uma das extremidades, a ponte se estende e anula seus passos. Como seus pais e avós, Lorz está condenado a permanecer ali e mirar a terra à distância: chega a antever nas margens pequenas casas e encostas de limo cedendo sem parar à fúria do tempo e a novos lugares.
A vida toda o mesmo sonho: a prova de pertencer àquele lugar gelado. Como o estrangeiro não sonha, não será nunca parte daquele mundo. É aceito por ali apenas porque foi acolhido por um dos moradores, Arlt, um sujeito misterioso que ousava sonhar o sonho alheio: um espelho refletindo a essência dos outros, mas nunca a sua.
Já os soldados Yang e Jinjing, em Os amantes de Changji, são o espelho um do outro — e ambos o mesmo (qual?). Idênticos, passam a vida toda procurando algo que os diferencie. Algo que os torne únicos: uma pinta, um fio de cabelo, uma ruga. Mas eles sabem que não existem diferenças refletidas no espelho.
Às vezes, num esforço mútuo de se esquadrinharem, (já não sabiam onde terminava a pele de um e começava a do outro), chocavam-se violentamente com o cotovelo e a testa e saltavam confusos. Uma tristeza profunda os prostrava durante meses, e nesse tempo gostavam de dormir sob as muralhas.
Muito bem escritos, os dez contos de A casa dos outros são permeados por um fio fantástico e uma constante referência aos sonhos. Arlt, por exemplo, sonhou que era um velho que via as palavras de um livro desaparecerem. Esse fato — um detalhe no conto do estrangeiro que vive na terra branca — é o foco de O deserto de Babel. Em uma inversão da história bíblica, as palavras vão caindo em desuso e se aglutinando, até restarem apenas cinco ou seis: “Não pude fazer nada quando um vizinho igualou com um mesmo fonema […] os pingos da chuva e uma pata de carneiro. Essa lei absurda repudia toda forma de sutileza e afeto. Não sei até onde podem ir os efeitos de sua devastação”. Apenas um homem consegue se livrar do “contágio” e continua falando e escrevendo. Usará o próprio corpo como papel, se for preciso. O importante é não esquecer as palavras. Não deixar o mundo prosseguir (seria possível?) sem sons e sem letras. Vácuo cheio de gente.
Em Como se tecem os lençóis, Castro trata do acaso — ele existe ou não? — e homenageia Paul Auster e sua A invenção da solidão. M. é um professor universitário com crises de pânico e também, nas horas vagas, um escritor sem livros. Seu melhor amigo — com quem não fala há tempos — é W., que mora em outra cidade com a mulher, Celia. Em mais uma noite solitária, M. joga seu charme para Alice, em um bar. Na manhã seguinte, descobre que já a conhecia. A história de M. com Alice parece repetir a de W. com Celia, anos antes. Uma casa de espelhos. “O acaso, entre tantos acontecimentos, é aquele que você elege por uma espécie de afinidade, que o assusta ou perturba, e no final das contas tem a ver com a história que você está querendo inventar para si mesmo, a sua própria aventura.”
Castro tem intimidade com a escrita. Seu livro de estréia é seguro, tem personalidade. Há muito ainda o que descobrir nas histórias desse marinheiro de primeira viagem. As inquietações da profissão, o significado (ou a tentativa de entendimento) dos sonhos, a comunicação (ou falta dela), os mundos imaginários. Me deixei levar pelas palavras e desenhei histórias paralelas com meus personagens favoritos. Mergulhei de olhos abertos em um mar de coincidências, espelhos, sonhos e pacotes misteriosos. E, procurando ver o traço do escritor, identifiquei rostos conhecidos — o meu, entre eles.
Cinco perguntas para Marcílio França Castro
O comum e o insólito
• O que aguarda o leitor neste seu livro de estréia?
A casa dos outros é uma reunião de dez contos que exploram formas, temas e cenários diversos, articulados, entretanto, por determinados traços comuns. Algumas narrativas se desenrolam em espaços urbanos, fazem alusão a cidades conhecidas, datas e situações cotidianas; outras evocam paisagens imaginárias e processos oníricos. Há, contudo, pelo menos dois elementos fundamentais que, acredito, aproximam todos os contos e de certa maneira unificam o conjunto. Primeiro, o fato de as histórias sempre envolverem algum personagem deslocado e fora de lugar, em um tempo ou espaço que não é o seu. Em segundo lugar, a força do estranho como aquele elemento que, presente em todas as narrativas, deve manter a tensão e a passagem entre o comum e o insólito.
• O que a sua literatura, em geral, pretende?
Um escritor nunca sabe o que de fato está escrevendo. Assim, penso que não sou capaz de falar sobre um objetivo ou uma pretensão para a minha literatura, ainda mais quando se tem na bagagem apenas um livro publicado. Entretanto, pensando na linha de força que, a meu ver, sustenta A casa dos outros, ou que, pelo menos, me moveu durante a sua escrita, talvez eu pudesse mencionar a idéia do estranho como uma proposta literária comum aos contos do livro. Ao conceber um conto, tudo o que é estranho torna-se, para mim, pelo menos a princípio, matéria narrável, e assim essa perspectiva poderia ser tomada como uma espécie de solicitação da narrativa. Meu ponto de partida para a escrita são aquelas situações ou fatos que provocam algum tipo de perturbação ou desequilíbrio, que trazem um incômodo, que resistem ao entendimento.
• Quais foram os maiores desafios, alegrias e tristezas durante a construção de A casa dos outros?
Venho preparando os contos de A casa dos outros há cerca de cinco anos. Depois de vários movimentos adiados, tive de aprender a conciliar o tempo do trabalho cotidiano com o da escrita, e essa é sempre a maior dificuldade. Costumo escrever e reescrever meus textos à exaustão. Durante esse processo, lento e exaustivo, há alguns breves momentos de prazer, e o mais inusitado deles talvez seja o da espera pela própria escrita, esse tempo que a antecede e a chama, aberto ainda a toda forma de especulação. Ao final de cada um dos contos, ou de alguma passagem que parece bem resolvida, costuma vir também uma confortável, apesar de ilusória, sensação de acabamento. E por fim, a partir do comentário dos leitores, é agradável redescobrir o próprio texto como se tivesse sido outro quem o escreveu.
• Quais os seus próximos projetos ficcionais?
Estou agora preparando um novo livro de contos, que terá o título de Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse. Devo concluí-lo até o final do semestre, mas não há ainda uma data prevista para publicação. As narrativas se aproximam por meio de um elemento comum: todas de algum modo envolvem, como personagem ou cenário privilegiado, lugares que, a princípio, poderiam ser tomados como sem nenhum interesse. Por exemplo: um terreno baldio ou o galpão de uma oficina, uma construção em ruínas, uma estrada abandonada, os corredores de um supermercado.
• Qual a sua opinião sobre a literatura brasileira contemporânea?
É sempre arriscado dar uma opinião genérica sobre tema tão abrangente, ainda mais quando se trata da produção atual, cuja proximidade não nos permite mais que um olhar embaçado e precário. Pelo que tenho lido e acompanhado, entretanto, diria que há dois aspectos que chamam a atenção na ficção que vem sendo feita hoje no Brasil. O primeiro deles é a diversidade de formas e estilos, que permite a convivência de linhas narrativas muito distintas, às vezes antagônicas, mas sem escolas nem monopólios aparentes. O segundo aspecto diz respeito a uma forte tendência à produção de relatos que, com sua configuração ambígua, operam na fronteira entre os gêneros literários e textuais, distendendo as formas narrativas e as possibilidades de leitura. São textos que misturam (ou ao menos simulam misturar) história e ficção, conto e ensaio, linguagem jornalística e linguagem literária, biografia e romance. Eu diria que a identidade e a memória, por um lado, e a relação com o corpo, por outro, têm sido um pouco a obsessão da ficção contemporânea.