Dois, de Oscar Nakasato, é um romance de filiação machadiana. Não apenas pelos capítulos muitas vezes curtos. Mas pelo dualismo estabelecido a partir de uma narrativa que procura enfocar a vida de dois irmãos, em tudo muito diferentes um do outro. Outro autor, também possível ponto de partida para este romance, é Milton Hatoum, de quem há mesmo uma das epígrafes: “Cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos”. Machado de Assis nos legou Esaú e Jacó, livro que retrata a vida e o conflito entre dois irmãos oriundos de uma família afortunada, às voltas da segunda metade do século 19. Já o autor amazonense de origem libanesa escreveu Dois irmãos, obra marcante na literatura contemporânea, que percorre a trajetória de uma família de imigrantes também libaneses, família que se instala em uma Manaus da primeira metade do século 20. Em ambas as obras, a marca principal será o conflito, no caso do escritor carioca, a referência bíblica cobrirá a narrativa com ares trágicos. Em Hatoum, no entanto, é que se concretizará a verdadeira tragédia.
Dois começa inovando por intermédio da estrutura narrativa. Não se trata de um percurso linear, com início, meio e fim. Há a trajetória de vida de ambos os irmãos: Zé Paulo e Zé Eduardo, mas talvez não seja esta a questão principal do livro. Aliás, o romance apresenta tantas questões, que seria empobrecê-lo apontar uma maior que outra. Apresenta a vida, e isto é tudo. Ao mesmo tempo em que, de certa forma, há o abandono do tempo cronológico, o livro acentua a discórdia familiar ao apresentar, predominantemente, dois narradores, os mesmos dois personagens principais.
Zé Paulo, mais velho que Zé Eduardo, rumina um ranço rancoroso por ter tido, durante toda a vida, um percurso, segundo ele, mais espinhoso do que o do irmão. Este primeiro narrador apresenta-se já na abertura do romance:
Não sei por que me perseguem como seu eu fosse um criminoso ou tivesse alguma dívida, justamente eu, que sempre andei na linha reta da lei e nunca levei uma multa de trânsito, porque é muito simples, se o semáforo está vermelho, é para parar, se a placa está indicando que a velocidade máxima é de cento e dez quilômetros, eu vou até cento e cinco.
Há ainda outras tiradas que acentuam seu comportamento conservador, incapaz de levantar qualquer tipo de questão: “as penitenciárias estão cheias de presos, esses vagabundos preferem roubar que trabalhar”.
Solares
Os capítulos onde predomina a narrativa de Zé Eduardo, o outro irmão, mostram-se mais solares:
Hoje quase nada sei. Acordo todos os dias para viver as incertezas que me cabem, feliz por poder responder: eu não sei. A ignorância é leve, poupa-nos de muitos aborrecimentos.
Este personagem, bastante criticado por Zé Paulo, foi uma espécie de filho pródigo. Deixou a casa paterna cedo, jamais arranjou emprego fixo, envolveu-se na política estudantil do final dos anos sessenta, e depois na luta política que se seguiu, tendo inclusive aderido à luta armada. Seu relato vai incluir alguns integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), entre eles o famoso Carlos Marighella, sobre quem, na página 107, há uma passagem importante.
O embate entre os dois irmãos persistirá, sobretudo através da voz do conservador Zé Paulo. Seu discurso, durante toda a narrativa, se dá num ritmo de oralidade, porque ele não está escrevendo nenhum tipo de memórias, mas conversando com uma neta. Através da reação dos personagens que estão à sua volta, é possível perceber que ele não acompanhou o avançar do tempo, sobretudo o período posterior aos anos 1960. As reações da personagem que o escuta são espelhadas no discurso deste mesmo narrador atormentado: “Todos me perseguem, você, a sua irmã, o seu pai, a sua tia Ana Júlia […]”.
Outro aspecto interessante do livro é o local onde a narrativa se desenvolve: Maringá, cidade anfíbia, repleta de um grande contingente de cultura japonesa. Embora o percurso de Zé Eduardo se estenda por São Paulo, Rio de janeiro, Santiago do Chile e Paris, a narrativa se firma na cidade paranaense. As duas capitais estrangeiras estão presentes porque o personagem vai para o exílio. Isso mesmo, sua atividade política, de resistência à ditadura militar, põe a sua vida e a de seus companheiros de Organização em risco, por isso as lideranças da ALN preferem mandá-lo ao estrangeiro. Zé Eduardo, após a vitória dos militares brasileiros contra a luta armada, estabelece-se em Paris como motorista de táxi, voltando ao Brasil apenas após a anistia.
Zé Paulo, que fica durante toda a vida em Maringá, tem como ofício a herança de uma relojoaria da família, situada no centro da cidade, de onde ele tira o sustento para si e para os que o cercam. Ele jamais olhará com bons olhos a atividade política do irmão, inclusive desmerecendo-lhe qualquer tipo de trabalho. Zé Eduardo, no Brasil, era desenhista, após a volta torna-se tradutor. Ainda na imprensa estudantil já traçava caricaturas que marcaram as páginas dos jornais de grêmio; mais tarde, no período da ditadura, sua pena satirizaria impiedosamente os militares, nos jornais clandestinos.
O livro começa no tempo atual, com Zé Paulo, amargurado, lamentando-se de uma espécie de vida perdida. Pouco a pouco, as peripécias que marcaram o Brasil dos anos 1960 em diante vão surgindo na narrativa, até mesmo o Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), onde esteve presente um dos narradores e, entre outros, José Dirceu.
Maringá mostra-se um belo cenário, com suas casas com quintais, árvores que serviam de trampolim para as crianças brincarem, ruas onde todos se conheciam, feiras, vendas, bares. Não poderia faltar também o centro agitado da cidade.
Dois é um livro, como se pode observar, rico em vida, tanto quanto à vida privada de cada personagem, como quanto à vida comunitária e mesmo política de uma nação, estendendo-se a exílios e retornos duvidosos, em projetos de vida que podem ser criticados, mas que não mostraram acomodação nem uma possível servidão.
Escrever literatura também é uma espécie de fazer inventário de perdas, ou cálculo de possibilidades, relatos de comportamentos humanos que, ninguém sabe, podem ser verdadeiros a uns e falsos a outros. Como diz Zé Eduardo já na altura de seus sessenta, quase setenta anos: “Hoje quase nada sei”. Os livros sempre foram os meios de transmitir o conhecimento. E a literatura, além de inserir-se neste percurso, veio também instaurar a