Estou quase pronto

Trecho inédito da biografia do poeta Miró da Muribeca, escrita por Wellington de Melo
Poeta Miró da Muribeca Foto: Pedro Escobar
01/09/2025

1. Embarque (2020)
Na tela da tevê, o jornal matinal local repete o vídeo de todos os anos, mas de uma forma diferente: a pauta é a baixa movimentação nos cemitérios no dia de hoje. Um homem muito debilitado com uma bata africana está sentado diante dessa tevê. Pesa 37 quilos de teimosia e vontade de viver. Seu olhar atravessa a tela com lápides vistas de um helicóptero, vai além, atravessa a janela, alcança as árvores que rodeiam o lugar onde ele está hospedado nos últimos quatro meses.

Mas este lugar não é um hotel.

— É assim que chamam os que se internam, “hóspedes” — havia me dito muito tempo antes.

A tevê que exibe a matéria sobre o primeiro Dia de Finados pós-covid-19 é a da sala de estar do Instituto Raid, no Recife. Trata-se de uma clínica de reabilitação, onde esse homem está internado desde agosto deste ano para tratar-se da dependência do alcoolismo. Não é a primeira vez dele aqui. Ao todo, passou pelo Raid seis vezes nos últimos sete anos, sempre sem pagar um centavo por sua estadia. Nos registros dos hóspedes da clínica, consta seu nome de batismo: João Flávio Cordeiro da Silva. Mas quase ninguém mais o chama assim. Em todo o país, o homem diante da tevê da sala de estar do Raid é conhecido como Miró da Muribeca.

Ele me espera sereno, parece cansado. Lembro de uns versos seus do poema Manifesto alegrista: “o alegrismo requer um riso incansável/ um bom-dia todo dia/ tanto bate até que um dia/ eles levem a sério”. Como achar que hoje é um bom dia? Sempre achei que o alegrismo, filosofia que Miró professava, era um sorriso com um olhar aberto à realidade, não uma felicidade alienante. No cansaço e na aparente tristeza de Miró nesse dia, vejo-o resignado, apesar da tensão do que acontecerá em algumas horas: hoje se internará no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). Ele ainda não sabe, talvez intua, mas em breve começarão os dias mais sombrios de sua vida.

Desde sua última entrada no Raid, em agosto de 2020, Miró não recuperava o vigor, mesmo estando longe do álcool. Era um cenário novo: em outras ocasiões, poucas semanas depois de hospedar-se, já havia engordado e tinha disposição para recitar poemas logo pela manhã, alegrando o ambiente. Miró não ganhara peso daquela vez, estava abatido e triste.

Havia algo errado.

— Vamos avaliá-lo — propôs o médico Wilson Freire, uma semana antes.

Wilson não era apenas o médico de Miró. Além de poeta, cineasta e artista plástico, era amigo havia muitos anos e acompanhava de perto sua luta contra o álcool, aconselhando e acolhendo o poeta sempre que ele o procurava, normalmente depois de chegar ao fundo do poço.

Após uma avaliação clínica, e em comum acordo com a direção do Raid, percebeu-se que era necessário um cuidado que não era possível na clínica, dada a fragilidade em que se encontrava. Wilson sugeriu então que o internássemos.

Sento-me ao lado de Miró na sala de estar do Raid e lhe dou bom dia. Os drones sobrevoam o cemitério na tevê e ficamos em silêncio por algum tempo. Um homem alto e forte, de olhar firme e voz suave me saúda e se aproxima de Miró com um prato de frutas. O poeta as engole sem vontade.

O homem que oferece frutas a Miró se chama Adroaldo Rocha Leitão. É cuidador há mais de vinte anos e já tinha experiência com hóspedes do Raid e com dependentes químicos. Foi o primeiro cuidador a ser contratado pelo grupo de amigos de Miró que se formou para dar-lhe suporte, quando seu estado de saúde piorou e a clínica já não podia atender às suas necessidades.

É nos braços de Adroaldo que Miró se apoia quando o levamos, com um segundo cuidador, até o pátio do Raid, onde está estacionado meu carro. “Todo o dia o ônibus de Deus passa levando alguns”, diz outro poema de Miró. Não é um ônibus que o levará ao Imip, Deus ainda parece ter outros planos para ele.

Um pouco antes da rampa, o poeta se detém.

— Me deixa parar só um minuto.

Miró parece irritado. Não sei se cansaço ou o peso de tudo: de deixar a clínica onde havia sido acolhido, de não saber se voltaria para lá. A pausa é talvez uma despedida que não fez. Um momento de ficar sozinho, sem cuidadores, sem amigos que incomodavam com sua presteza. O tempo de um poeta é sempre diferente do das outras pessoas. Mas, neste caso, o tempo de Miró passa mais lentamente do que o habitual.

O dia está nublado, mas modorrento. Meu carro tem as janelas abertas e vamos todos de máscara. Deixamos para trás o Horto de Dois Irmãos, que não recebe visitas desde o começo da pandemia. Penso comentar sobre a inutilidade dos zoológicos, mas no retrovisor vejo um Miró circunspecto.

Passamos em frente à Fundação Gilberto Freyre, no bairro de Apipucos. Gilberto Freyre, um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século 20, autor de Casa-grande & senzala, é um dos precursores da miragem chamada de democracia racial no Brasil. Apipucos é um bairro de classe média alta do Recife, originado do Engenho São Pantaleão do Monteiro. Apipucos deriva etimologicamente do Tupi ape-puca (caminho que se bifurca), em referência à conformação da estrada que existia no local e que até hoje faz parte do bairro. Em 1577, as terras do São Pantaleão do Monteiro foram desmembradas para dar origem ao Engenho Apipucos. Ali, não se sabe quantos pretos serviram de mão de obra escravizada, muito antes de Gilberto Freyre tentar suavizar a violência da cultura escravocrata de seus ancestrais com suas ideias de conciliação — 443 anos antes de o poeta preto Miró passar em frente à fundação, rumo a um hospital, para descobrir o que estava debilitando sua saúde.

Miró vivenciou muitas situações que comprovaram que a democracia racial não passava de um mito. No livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes: descaminhos de três poetas marginais do Recife, do professor de cinema Camilo Soares, o poeta narra um desses episódios de racismo:

Perguntou quanto era a passagem para Recife. Mais uma vez queria retornar à casa. Ver a mãe. Amigos. Entre comprar logo ou tentar encontrar um precinho mais baixo, optou por esperar. Agradeceu e foi telefonar para um amigo enquanto decidia. Fazia mais de ano que estava longe de Recife, tentando conquistar novamente a maior cidade do Brasil. Palmo a palmo, Miró desbrava essa grande selva de concreto pela terceira vez. Jogo de cintura nunca faltara para esse andarilho e não seria São Paulo que pararia o andar de sua poesia, força de viver. Em pouco tempo, cativou jornalistas e poetas nesse asfalto frio e áspero; mas além dos contatos, ele, sobretudo, produz como nunca. O fervor da grande metrópole instiga a sua arte. Milhões de pessoas e milhões de acontecimentos para cada pessoa. O cara cospe no chão, outro olha para o céu, uma mulher entra molhada no elevador — a frenética cidade oferece um mar de motes a um poeta observador. E ele escreve…

Sentou-se num bar ao lado do orelhão e tomou rapidamente duas cervejas. Resolveu, enfim, comprar a passagem, afinal estava sem lugar para morar e teria mesmo que esperar um conhecido desocupar o apê, onde ele poderia passar uns tempos. Nesse ínterim, poderia ir ao Recife, para a casa da mãe na Muribeca. Levantou decidido em direção aos guichês. No meio do caminho, dois guardas o interceptaram. “Ei, negão, se não vai comprar dá o fora!” Miró olhou sem acreditar e perguntou o que é que estava acontecendo. “Os guichês têm dinheiro e a gente não quer nego passeando por aqui.” No que ele disse que ia comprar um bilhete, o guarda já tinha lhe aplicado um golpe com o indicador e o polegar na garganta, enquanto o outro o agarrou pelas costas. Levaram-no para longe e o empurraram para a calçada. “Agora vai embora. Chispa!”

Inconformado, Miró voltou e entrou na delegacia da rodoviária. Uma loira veio atendê-lo. Ele disse que queria prestar queixa e contou o caso. Ela o acompanhou de volta e chamou os agressores. Perguntou o que tinha acontecido. Os guardas disseram que eles viram aquele rapaz rondando os guichês e, quando vieram perguntar-lhe o que queria, ele começou a discutir. Miró tentou falar que estavam mentindo, mas a policial o interrompeu. “Olhe, é melhor você ir embora mesmo!”

Lágrimas de raiva nos olhos vermelhos. Só, indefeso e injustiçado na cidade da solidão. Queria gritar, desamparo, explodir, mas a impressão que ninguém o ouviria, um deserto na multidão o calou. Restou apenas correr — que o suor dissipasse a cólera. Autoflagelo que durou trinta ruas e trinta cervejas. Como gostaria de, naquele momento, ouvir novamente a voz amiga de Maurício dizendo: “Liga não, cara. Joga tua bola”.

Quem era esse Maurício a que o poeta se referia ao lembrar o episódio de racismo em São Paulo? Para descobrir, precisamos voltar no tempo e no espaço, revisitar uma das paradas cruciais que o ônibus de João Flávio fez para que ele se tornasse Miró. Por isso, em Apipucos, o tempo se bifurca e regressamos para conhecer aquele que apresentaria o futuro poeta à poesia, ainda nos anos 1970. Pararemos na casa onde essa pessoa vivia, com seus pais e irmãos: o número 41 da Rua Dom Vital.

NOTA
A biografia Miró da Muribeca — Estou quase pronto estará em pré-venda de 22 a 30 de setembro no site da Cepe. O lançamento está previsto para outubro.

Miró da Muribeca
Nasceu em Recife (PE), em 1960. Foi uma das principais vozes da poesia urbana do país. Criou, a partir de livros, vídeos, zines, cartões, envelopes, cartazes e performances, uma das obras mais líricas e pungentes da poesia na virada do século 20 para o 21. A Cepe publicou Miró até agora e prepara um volume com a obra reunida do autor. O poeta faleceu em 2022.
Wellington de Melo

É escritor, professor e editor. Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Pernambuco, é professor do Colégio de Aplicação da instituição. Publicou, entre outros, Estrangeiro no labirinto (romance semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), O caçador de mariposas (poemas, traduzido para o francês e para o espanhol) e o mais recente romance Emilio. É curador da obra de Miró da Muribeca.

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