Kant em coma é o terceiro romance de André Rangel Rios. Confesso que não conheço os dois primeiros, mas admito que fiquei curioso, tamanha a estranheza e aparente vazio que o objeto destas linhas suscitou.
Kant em coma é o romance da tempestade de areia, considere tudo que possa advir daí, tanto para o bem, caso exista, quanto para o mal. Aparentemente é a poeira do deserto. A das estrelas é outra história, sem graça também. Aparentemente, foi o que eu disse, caro apressadinho. Anda pra cá, anda pra lá, percebe-se que algo se movimenta. Mas o quê? Vultos. Que vultos?
A angustia, a melancolia, o óbvio, o clichê. É pouco? Em 102 páginas é quase muito, visto que a poeira vai adensando e o sufocamento se torna insuportável.
Professor universitário frente a um dilema profissional e a guerra das vaidades no meio acadêmico, combinados à hipocondria e medo de morrer, ex-mulher em permanente hostilidade, um filho praticamente indiferente, sexo fugaz e a cereja do bolo, a expectativa do telefonema da irmã informando a morte do pai em coma há dois anos.
Não é difícil arriscarmos o palpite a respeito das intenções do autor, urdir uma trama que tivesse como pano de fundo o meio acadêmico e ao mesmo tempo deixar à vista do leitor o quanto de humanismo aqueles “cérebros” ainda possuem.
Daí para o equívoco é meio passo. Na tentativa de ressaltar a afetividade tanto dos professores quanto dos alunos envolvidos com os temas kantianos, Rangel Rios fica um tom acima e a poeira dos clichês entra em cena, arranha o olhar. Professor que se envolve com aluna, o discurso rançoso de se insurgir contra a comunidade acadêmica, o colega que pede demissão sem justificativa das mais plausíveis, a cansativa apologia às cartas marcadas que regem as admissões a cursos de mestrado ou doutorado. Enfim, Kant em coma pode ser lido também como a tese do acadêmico contrariado, o excluído rancoroso. Agora, a quem isso pode interessar , paciente leitor, não é problema meu! Todo livro tem seus encantos, menos livro de auto-ajuda, vamos deixar bem claro isso. Auto-ajuda é oportunismo barato, ilusionismo para semiletrado e ponto Este não é o caso de Kant em coma, o livro da desilusão. Perceberam como fui engraçadinho? Depois de escrever a palavra ponto, não coloquei o ponto final, pois transferi essa responsabilidade à palavra. Original, não? Bobagem, gracejo infeliz, o fiz apenas para mostrar que o André Rangel também faz suas graças estéreis com seus períodos quilométricos e repetições enfadonhas. A bobagem que fiz como exemplo e as tantas que o autor apresenta não acrescentam nada, mas nada mesmo à literatura, não significa escrever bem, tampouco contar de forma atrativa uma história. É puro malabarismo estilístico, ilusão, na minha terra, conversa pra boi babar, atestado de coisa desinteressante. Mas é bom lembrar que toda obra funciona de uma determinada maneira e cabe ao leitor descobrir essa mágica. Não faça cerimônia. Segundo Lezama Lima, toda obra deve ter a abundância justa, em que a exuberância acaba sendo a essência e Rangel Rios não permitiu que isso ocorresse no momento em que desfaz a densidade e a metáfora vira objeto supérfluo, transforma tudo em exercício de retórica (“a retórica sempre diz menos do que quer dizer”), forma civilizada de dizer, verborragia sem propósito, deixando no esquecimento qualquer sinal de projeto estético.
André Rangel Rios teceu a teia do óbvio com a agulha da mágoa. Optou pelo discurso figurativo, sustentado por elementos cotidianos, que ao final sugere uma relação com o sonho ou mesmo com a alucinação.
Desabafo
Convenhamos, não é pra qualquer artesão. Mas com que intenção? Como não sou psi, nem cólogo, muito menos quiatra, e eles não me enganam, não me atrevo a fazer relações, extrair conclusões, tampouco lançar mão de adivinhações. Eles gostam! Arrisco dizer que André simplesmente desabafou. Misturou alhos com bugalhos, esqueceu de contar uma história e fez de Kant em coma um híbrido de ensaio sobre agruras da vida acadêmica e sintomas de um futuro romance. O autor opta em determinados trechos por uma linguagem empolada, e, como se não bastasse, confusa em outros em que escolhe a oralidade. Tudo isso em meio àquela poeira nefasta sob os faróis cansados do mau humor.
André Rangel Rios conseguiu o mais difícil: escrever um livro monocórdio, um permanente andar em círculos numa tentativa desesperada de mostrar o quanto se faz supérflua essa narrativa. Lamentável, visto que tudo podia ter saído bem diferente, pois é justamente nessa circularidade que se instaura a reflexão a respeito do ser: vida e morte girando em alta velocidade em torno de algo, seja Deus ou mesmo sua negação. A morte, Vitor e o medo da morte, o pai morto, o tempo, a simbiose entre sensibilidade e pensamento, tudo isso o autor faz questão de mostrar pelo avesso.
Vitor, o suposto protagonista, não tem muita afeição pelo movimento enigmático, excetuando-se o rancor, a dúvida e o medo. Opta pela arquibancada. A função do espectador já lhe é o bastante.
Pela sua carreira de professor já não faz muito, está velho, e a resignação é o que lhe resta. De vida afetiva circunstancial e insossa, alimenta a dúvida de escrever ou não literatura, a desconfiança quanto a utilidade da mesma é a justificativa para a paralisia. Ou seria medo? Enquanto isso, aguarda que a doença ponha fim à agonia silenciosa do seu pai e que o tempo não lhe traga um câncer de próstata.
O autor evoca Eros para fugidios solos. Tánatos, como é de hábito, rege a orquestra do início ao fim da narrativa, enquanto no foco do holofote, no centro do palco, sexo e anulação consumam a cena final, a união dos desesperos. A destruição inevitável, quer do pai que está morrendo, quer a sua ao perceber a chegada da velhice, o gozo do tempo é a morte; mais a dúvida, fazer ou não literatura é o grande impasse, o espectador teria que se transformar em criador. Como? Este é o nó, não precisa nem ser grande, que André Rangel não conseguiu desfazer. A melancolia, a angústia, a raiva e até mesmo o mau humor podem ser belas matérias-primas. Quando trabalhadas com elegância e certa sutileza produzem suaves nuances. Não foi o caso, infelizmente.
Na tentativa de trazer erudição ao discurso ou quem sabe de retirar a pompa, simplificar o discurso, o autor se perdeu em meio à poeira das pretensões a possibilidade de conceder uma abordagem mais precisa ao seu grande personagem — o tempo. E mesmo ante essa referência proustiana, o autor parece fazer pouco caso. Sugiro que releia Em busca do tempo perdido, mais precisamente o final de O tempo redescoberto. Como atuar entre as extremidades do arco-íris, sempre lembrando que Ernesto Sabato já escreveu que “o homem só tem dois problemas: ter nascido e ter que morrer, e que alguns escrevem para entreter a espera”. Vitor desliza entre o vivido e o perdido, e isso por si só já daria pano pra mangas. É a vida; e viver não escolhe armas, exige. Então que se fale da vida, que não se resuma o viver à vaidade e aos medos. Indico a leitura da poeta Argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) e sua poesia biográfica. Não estou me referindo à biografia de André Rangel, mas à de Vitor. Em seu poema Extracción de la pedra de locura, que dá titulo ao livro, Alejandra diz, e que André e Vitor a leiam:
no hables de los jardines,
no hables de la luna,
no hables de la rosa,
no hables del mar.
Habla de lo que sabes.
Habla de lo que vibra en tu medula y hace luces y sombras en tu mirada,
habla del dolor incesante de tus huesos,
habla del vértigo, habla de tu respiración, de tu desolación, de tu traición.
Es tan oscuro,
tan en silencio el proceso a que me obligo.
Oh, habla del silencio.
Com base no poema de Alejandra, fica mais fácil percebermos que o campo de batalha de Vitor é o próprio Vitor. Mas no romance um desvio fatal direcionou os faróis de milha para questões periféricas. E o manual diz que sob neblina e poeira, faróis baixos. Resumo da ópera, Kant em coma não consegue cumprir o que anuncia, seu dramático existencialismo disfarçado por uma retrógrada visão do intelectual converge para o vazio, tanto de propósitos do enredo quando literários. Sugiro que o encaremos o dito cujo como um quase ensaio, rascunho de romance.
Faltou algo? Sim, mas não vou falar, você também deve estar cansado dessa praga da metalinguagem.
No mais, “pergunte ao pó”.